Nota Pública Sobre os Acontecimentos na Central do Brasil

Fonte: Assembleia do Largo

O ato contra o aumento das passagens, realizado no dia 06 de fevereiro de 2014, contou com a presença de mais de três mil manifestantes, reunindo uma pluralidade de pessoas e movimentos diversos. O protesto dava sequência aos atos anteriores nos quais manifestantes, trabalhadores e usuários do transporte público reivindicavam melhorias e o barateamento da tarifa dos transportes públicos por meio de um catracaço realizado na estação Central do Brasil. Diferentemente das duas ocasiões anteriores, a polícia dispersou a multidão de forma truculenta, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo foram amplamente utilizadas contra todos os que se encontravam nas imediações da estação Central do Brasil naquele momento, sendo estes manifestantes, usuários do transporte ou mesmo transeuntes desavisados.

Por conta da atuação policial, a situação rapidamente se tornou caótica, culminando na morte de duas pessoas. Nesse mesmo dia presenciamos o atropelamento e morte de Tasman Accioly e o grave ferimento que vitimou Santiago Ilídio Andrade, cinegrafista da Rede Bandeirantes de Televisão. Diante do ocorrido, nós, abaixo assinados, prestamos solidariedade às vítimas, suas famílias e amigos, e lamentamos profundamente a situação que levou aos dois acidentes. Entendemos que tais perdas representam tragédias pessoais pois cada vida deve ser valorizada de maneira igualitária, mas também coletivas pois dizem respeito à todos nós que estamos nas ruas. Dessa forma, para que estas e outras tragédias não sigam acontecendo, nos sentimos na obrigação de levantar alguns pontos importante para reflexão:

1) Desde o início dos protestos, o direito à reunião, à opinião e à livre manifestação (legítimos e amparados pela Constituição Federal de 1988) têm sido severamente atacados por meio do uso abusivo da força policial que conta com o respaldo de outras instituições públicas e privadas. Apesar de ser responsável direto por dezenas de mortes e centenas de pessoas feridas com gravidade em atos cuja intencionalidade foi clara, o poder público e empresarial quer transferir sua violência àqueles que estão nas ruas, lutando por melhores condições de vida e mais democracia. Está muito claro que a violência que agora aparece é resultado dos arranjos de poder costurados antes. Assim como as estratégias adotadas pelo governo e a grande mídia corporativa para reprimir as manifestações só vão produzir as condições para que a violência se agrave mais no futuro.

As manifestações sempre se pautaram pela contestação PACÍFICA à forma de atuação de governantes e empresários na gestão do país e da cidade do Rio de Janeiro, no sentido de jamás ter o objetivo de causar risco à vida de quem quer que seja. Uma semana antes, dois atos puxados pelos manifestantes contra o aumento abusivo das passagens ocorreram sem maiores transtornos. Qual a diferença entre eles e o de quinta-feira, 06 de fevereiro? Nós respondemos: o massacre perpetrado pela PMERJ na Central do Brasil na última quinta-feira, que estendeu o conflito à toda a região do Centro e aos trabalhadores que por ali passavam no momento. Jamais os manifestantes visaram atingir quem quer que fosse.

O que ocorreu com o jornalista da Rede Bandeirantes de Televisão Santiago Andrade, bem como a morte do vendedor ambulante Tasman Accioly foram fatos inaceitáveis ocasionados por um conflito violento que não desejamos e SOBRETUDO QUE NÃO INICIAMOS. As responsabilidades, devem ser tratadas com seriedade e respeito aos direitos de todos os indiciados ou acusados, sejam eles policiais

ou manifestantes. Repudiamos todo julgamento prévio e o linchamento público que dele resulta.

2) A violência e o assassinato fazem parte do repertório político do Estado na tentativa de controlar a população e impedir manifestações populares. Vale lembrar que, desde junho de 2013, foram pelo menos 25 mortos[1] em decorrência direta da ação da polícia contra as manifestações e os manifestantes. Segundo dados da Abraji[2], apenas em 2013 foram 114 jornalistas feridos nas manifestações, a grande maioria deles atingida por artefatos e golpes de policiais militares. Recordamos ainda que esses números se referem apenas às agressões que foram registradas, podendo este ser ainda maior pois por medo de perseguição política muitas agressões acabam não sendo denunciadas. Todavia, nenhum dos feridos nas manifestações, dentre os quais o fotógrafo Sérgio Silva que perdeu um olho ao tomar um tiro de bala de borracha disparado pela polícia, mereceu qualquer retratação por parte do Estado nem a mesma atenção por parte da mídia corporativa. Os policiais envolvidos nas agressões jamais foram responsabilizados pelos atos de violência, nem investigações foram levadas adiante. Nesse mar de atrocidades, por que dar exclusividade ao caso de Santiago? Essa tragédia não pode servir como pretexto para qualquer repressão maior ao exercício dos direitos políticos. Ou assumimos todos a luta pela democracia ou corremos o risco de ver o Estado de exceção e a violência se tornarem o único horizonte político.

3) A violência que ocorre na, ou mais propriamente contra as manifestações é também semeada pela mídia. Quem se lembra, por exemplo, quando em julho de 2013, por ocasião da visita do papa ao Rio de Janeiro, a Rede Globo de Televisão editou imagens e acusou, de modo leviano e irresponsável, o ativista Bruno Ferreira Telles de ter atirado um “coquetel molotov” contra a polícia? Em seguida, no entanto, foram levantados fatos e convincentes indícios, por iniciativa exclusiva dos demais manifestantes de que: a) o artefato havia sido atirado por um policial infiltrado (P2), fato jamais esclarecido pelo Estado ou pela referida rede de televisão; b) que toda a edição de imagens da Rede Globo era falsa, quando não abertamente mentirosa e, por isso mesmo, criminosa; c) que as acusações faziam parte de uma estratégia da empresa de comunicação em parceria com o governo do Estado para criminalizar e desacreditar o movimento. Mais ainda, quem se lembra da atuação do Promotor Público em entrevista à referida emissora, condenando sem provas e totalmente fora de seu campo de atuação um manifestante por “tentativa de homicídio”? Ainda aguardamos os pedidos de desculpas da emissora da família Marinho e do agente público em questão pela exploração leviana e vil destes episódios. A mesma que vemos agora envolvendo novamente a Rede Globo de Televisão e o delegado responsável pelo caso Santiago. Lembremos, ainda, do caso grotesco do morador de rua Rafael Vieira, o primeiro condenado durante as manifestações, que segue preso por portar uma garrafa de desinfetante e outra de água sanitária.

A cobertura da grande imprensa não se orienta pelo esclarecimento dos fatos, mas pela intervenção política e a intenção de acuar e demonizar os protestos, com o intuito de manter salvaguardados seus interesses e aqueles de seus sócios. Desde pelo menos a ditadura empresarial-militar de 1964 que a Rede Globo de Televisão faz o duplo papel de parte envolvida no conflito e de juíza deste mesmo conflito: declara-se imparcial, mas defende a atual política de transportes – incluindo o aumento rejeitado pelo relatório do tribunal de Contas do município TCM – e atua desde junho de 2013 para criminalizar e desqualificar o movimento.

4) Os acidentes envolvendo jornalistas também são responsabilidade das empresas para as quais estes trabalham. Reiteradamente, assistimos a negligência destas quanto à segurança de seus empregados. Quando as empresas agora expressam pesar, como no caso do jornalista Santiago Andrade, da Rede

Bandeirantes de Televisão, é com cinismo que o fazem, pois nunca se importaram com a vida da população ou com a segurança de seus funcionários. A Rede Bandeirantes de Televisão enviou o jornalista Santiago Andrade sem qualquer Equipamento de Proteção Individual (EPI) – conforme regula a Norma Reguladora n. 06 – para a linha de frente de um conflito marcado desde o início pela violência do Estado. Vide ainda o caso do jornalista Tim Lopes, morto pelas mãos de traficantes armados, mas enviado para eles pela empresa que o contratava, a Rede Globo de Televisão, da família Marinho, segundo afirma a própria viúva de Tim[3].

5) A violência estatal e empresarial também marca a realidade carioca do serviço público de transporte. Recentemente, três trágicos acidentes automobilísticos e ferroviários abalaram a cidade do Rio de Janeiro: um ônibus da viação ‘Paranapuan’ despencou de um viaduto próximo à Ilha do Governador, em abril de 2013, matando 09 pessoas, após um passageiro agredir o motorista que, sozinho tinha que contê-lo, dirigir o ônibus e ainda fazer as vezes de trocador, tudo ao mesmo tempo; no dia 22 de janeiro de 2014 um trem da Supervia descarrilou, ocasionando grande transtorno aos usuários, que não receberam a devida assistência da concessionária e tiveram que caminhar pela via férrea, correndo o risco de serem atingidos por outros trens; finalmente, no dia 28 de janeiro último, um caminhão a serviço da prefeitura atingiu uma passarela na Linha Amarela, que por causa do impacto acabou despencando, e matou cinco pessoas e feriu outras tantas. Tais casos, envolvendo falta de segurança, negligência na manutenção dos transportes e precárias condições de trabalho – a dupla função no caso do motorista de ônibus – não receberam maiores atenções por parte da mídia ou do Estado, nem tiveram averiguadas as responsabilidades em questão. Quando se trata de agentes econômicos poderosos e dos governantes municipais e estaduais, nenhum perito é convidado a falar, e a corda arrebenta sempre, invariavelmente, do lado mais fraco. Então perguntamos: a vida dessas pessoas não vale uma investigação? Essa violência brutal, fruto dos arranjos mafiosos em torno do sistema de transportes não possuem responsáveis? Onde está a CPI dos ônibus? Quem mandou engaveta-la? E com que fim?

7) Por tudo isso, não vamos aceitar o clima de guerra que o Estado e a Rede Globo de Televisão mais uma vez tentam nos impor. Eles, que sempre plantaram o medo e a violência, que não sabem lidar com a contestação que a multidão pratica nas ruas, são os únicos beneficiários desta política do medo e da violência. Neste sentido, talvez seja oportuno recuperar o motivo pelo qual estamos nas ruas, e também as razões pelas quais as manifestações cresceram e se massificaram.

Contra a violência cotidiana dos transportes, a tarifa zero e uma vida sem catracas; contra a violência cotidiana do Estado e sua polícia, a desmilitarização e a paz dos muitos que saem às ruas; contra a violência cotidiana da mídia, a valorização da resistência que é condição para qualquer democracia digna deste nome; contra a violência dos grandes eventos e a cidade-mercado, a luta da população que cria e recria o Rio de Janeiro e que resiste nas redes e nas ruas.

As manifestações são o resultado da falência dos acordos de gabinete envolvendo empresários, imprensa corporativa e governantes. A resistência da população que luta é a única possibilidade de atingirmos uma real democracia, que só pode se dar de fato através da participação popular na gestão pública. Nas ruas, buscamos a todo custo praticar a democracia que defendemos. Não fazemos projetos mentirosos nem vendemos esperança de dias melhores para a população. A democracia que pregamos é a mesma que rege o funcionamento horizontal de catracaços, assembleias, grupos e eventos coletivos. Se há um traço capaz de unir pessoas e grupos tão diferentes é a alegria por compartilhar a construção de uma cidade mais democrática; a coragem de enfrentar o medo e lutar por um Rio de Janeiro mais

colorido e por isso mesmo pacífico; o amor pelo outro que nos leva a correr riscos nessa caminhada. E é exatamente por lutarmos pela vida – nossa e dos outros e outras pelas ruas – que não podemos deixar passar tamanha manipulação e oportunismo em torno da morte do cinegrafista Santiago Andrade e o absoluto silêncio diante de todas as outras perdas, sobre as quais a mídia, por conveniência, silenciou. Chega de Amarildos. Aqui ninguém fica pra trás!

[1] Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2014/02/528893.shtml
[2] Disponível em: http://portal.comunique-se.com.br/index.php/comunicacao/73121-policia-e- responsavel-por-75-das-agressoes-a-jornalistas-revela-levantamento-da-abraji
[3] Disponível em: http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-omissao-da-tv-globo-no-caso-tim-lopes

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