Existe um forte encantamento global com as novas possibilidades de interação social e produção criativa consequência das (nem tão) novas plataformas de comunicação na internet. Vivemos um momento quase histérico de exaltação do software livre e da produção coletiva em rede. São poucos os que param para refletir sobre a estranheza dessa mente entorpecida de paixão por algumas máquinas e do poder de dominação sobre a humanidade destas.
Os principais softwares são produzidos por um número pouco expressivo de empresas em sua maioria norte americanas como Facebook, Twitter, Instagram, Dropbox e Google. São estas que estão produzindo muito mais que simples plataformas de interação mas, antes disso, dinâmicas de pensamento que vem influenciando nossas relações “away from keyboard” como dizem os sobreviventes do Pirate Bay, referindo-se à vida humana, longe do teclado. Facebook por exemplo, embora tenha promovido uma conexão global jamais vista anteriormente na história da humanidade, é uma plataforma que promove a dispersão e a amnésia além de, na realidade, restringir a nossa comunicação às pessoas com quem temos mais interação naturalmente. Nos prende em uma ilusão de que nos comunicamos com o mundo quando na realidade estamos presos em um algoritmo pensado por alguns programadores que definem quem nos lê e quem lemos segundo padrões de curtidas e mensagens inbox.
Aos poucos passamos a pensar nossas relações sociais polarizadas em curto e não curto, compartilho e ignoro, leio mas não reflito. A dinâmica temporal de instantaneidade de todas essas plataformas também vem gerando ansiedade e angústia por ser radicalmente oposta à temporalidade processual da vida cotidiana. Sem contar sobre a nova definição da verdade: se ainda não saiu no twitter ou ainda não há links no Google, então não aconteceu.
Se debatemos sobre o a importância e o poder das narrativas de construir um novo mundo, de contar uma nova história para esses tempos de crise global, é preciso estar atento para o poder destas poucas plataformas em definir como estas narrativas podem ser contadas. Aos poucos estamos esquecendo das outras possibilidades de comunicação e antigas tecnologias consideradas antiquadas cada vez que as dominadoras do hardware como Microsoft e Apple resolvem lançar um novo produto no mercado.
Existe uma disposição mental criada pelo próprio mercado de consumo de aceitar as novas tecnologias sempre como superiores. É Heidegger que escreve em “A Origem da Obra de Arte” que a humanidade parece estar presa no objetivo do eterno transformar por transformar, um discurso vazio de progresso enquanto sentido da vida por falta de um objetivo melhor. Não há mais uma abertura de um olhar para outras possibilidades de criação que não atreladas à essas novas tecnologias de comunicação em constante mutação definidas a portas fechadas dentro de algumas poucas empresas.
Cada vez que uma nova plataforma é lançada e faz sucesso, a humanidade e, em especial, os comunicadores, precisam se atualizar e reformular seu modo de atuação para se adaptar a essa nova dinâmica produzida por alguns poucos. E assim, todas nossas relações começam a ser definidas através de softwares antes da emoção, intuição ou experiência de vida. Até relações amorosas vem sendo afetadas por aplicativos como o Tinder e o Lulu que enquadram pessoas e singularidades em algumas porcentagens, hashtags e estatísticas qualitativas que julgam critérios aleatórios como humor, charme, inteligência, etc..
Na publicidade tornou-se norma a remodelagem frenética de estratégias de acordo com novos lançamentos de possíveis meios de divulgação de produtos e serviços. A comunicação publicitária tornou-se um campo absolutamente instável e isso é considerado positivo pela maioria das pessoas já tomadas por uma norma de pensamento sempre voltada para a produção e o progresso infinito. Ser especialista já não vale de mais nada já que não há tempo de se especializar, o mercado hoje é dominado pela emergência dos não-especialistas, os que conseguem se atualizar mais rápido tem mais chances de sobreviver do que outros.
Incentivamos cada vez mais uma competição desenfreada e até selvagem sem parar para respirar e refletir sobre o poder dessa máquina que está nos mandando aguardar há 5 minutos antes de ligar, nos mandando atualizar seu sistema, nos mandando retirar corretamente o pen-drive, nos mandando salvar nosso trabalho, nos mandando tentar novamente, nos mandando aceitar termos de uso, nos mandando… nos mandando… nos mandando…
Estamos nos permitindo dominar por programadores ocultos escondidos em salas de reunião na Califórnia. Abrindo mão de milhares de possibilidades de repensar comunicação e interação em nome dos que tem o conhecimento maior segundo a academia ou o pensamento científico-lógico-matemático. São novas estratégias de dominação global sendo engolidas disfarçadas de liberdade criativa e possibilidade de conexão. Enquanto na verdade censuram, vendem dados privados para empresas de marketing, vendem padrões de busca para setores especializados em compras, monitoram as relações políticas, quebram sigilos de e-mails e mensagens privadas, protegem os direitos autorais das grandes corporações culturais, removem vídeos e produções sem aviso prévio e vão aos poucos definindo o que é real e o que não é. E vão contando a história dos vitoriosos.
E nós vamos caindo cada vez mais na dependência dessas plataformas para combinar os mais simples encontros com amigos, para saber o endereço da próxima reunião, para nos distrair, para trabalhar, para ouvir música, para buscar receitas, para saber o que passa no mundo, para nos expressar “livremente e cada vez mais nos desligando do mundo real, da natureza, da arte, dos prazeres corporais para estar mergulhados na mente concentrada funcionando de acordo com o que o software permite.
Esquecemos da delícia que é o analógico. Tratamos tecnologias dos povos tradicionais de cultivo da natureza ou comunicação através de tambores enquanto inferiores e até esquizofrênicas, não valorizamos nossos sentidos como olfato, tato, audição, visão e paladar, abrimos mão disso tudo para ficar confortáveis em frente a uma tela que aparentemente resolve tudo. E vamos nos desconectando das dinâmicas produtivas dessa cadeia comunicadora, assim como todas as outras dinâmicas produtivas de tudo. É só clicar que o produto chega um dia depois. Nos desconectando da natureza e permitindo que seja devastada para alimentar mais máquinas, mais petróleo, mais energia elétrica, mas silício, mais metais, mais plástico, mais lixo, etc. Porque nossa prioridade é maquínica e essa falsa proposta de possibilidades infinitas.
É preciso se apropriar não só do software como propõe o movimento software livre que tenta com pouco sucesso relativo ao poder das grandes corporações contribuir com a produção de plataformas alternativas. Mas também repensar hardware, construir computadores artesanais. E novas máquinas locais adaptadas às necessidades culturais de cada região. E repensar o que é tecnologia no geral. Produzir um olhar crítico e humano para pensar a cultura de redes retirando-a do campo da salvação que beira o fanatismo mas compreendendo a rede como o que ela é de maneira mais abrangente em um jogo de xadrez político que vem definindo não só o futuro da humanidade como a permanência da espécie no planeta.
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