Tecnoxamanismo não é isso!

Oito meses após o I Festival Internacional de Tecnoxamanismo, me lembro dessa época com certa nostalgia da minha ingenuidade. Foram 6 meses de programas semanais debatendo e desenvolvendo o conceito que chegou na minha vida quase morto. No primeiro programa, a ideia era mudar o nome totalmente para “tecnoficção” ou algo do gênero. Mas essa palavra mágica “T-E-C-N-O-X-A-M-A-N-I-S-M-O” que tem a capacidade de levantar sobrancelhas e borbulhar as caldeiras de Dionísio não poderia ser desconsiderada assim, sem uma passagem pelo incentivo energético da Penny. O momento do mundo é tecnoxamanismo! Essa palavra resume a disputa evolucionária da humanidade, abre as portas da Nova Era. Não descartemos tão rápido.

Nos amamos por 6 meses. Fazíamos sexo mental toda quinta-feira às três da tarde na Rádio Interferência, nossos olhos vidrados uma na outra, jogávamos ideias de lá pra cá, rebatendo, contestando, nos complementando em uma dança criativa que ficava mais tensa e afiada conforme nossos ouvintes aumentavam, a rede se movimentava e o conceito começava a entusiasmar e horrorizar por aí. Tínhamos plateia regular com fome de interação na rádio, convidados especiais se juntavam ao caldeirão referencial de vez em quando. A maneira que criávamos no meio daquele falatório ininterrupto era absolutamente livre, não linear, egoísta e revolucionária por acontecer dentro das paredes acadêmicas da UFRJ onde os formalismos são exaltados e nada é válido sem nota no rodapé. Mudávamos vidas semanalmente.

Conforme o conceito tomava forma e criava limites em sua aura, fomos nos definindo melhor também e começando a perceber as diferenças de expectativas em relação a ele mas seguíamos na energia da complementação, diferenças que promovem o crescimento pelo debate. Não havia necessidade de concordar em nada, era só criação, canalização de ideias aleatórias em um misto de referências de ponta e um pouco de porno-terrorismo para temperar.

Durante o festival porém minhas expectativas alucinadas se fizeram mais claras e, pra variar, me decepcionei. Eu acreditava que debatíamos o futuro. Mas não era bem isso. Até agora não sei o que era na verdade. Pra quê tudo aquilo? Debates, rádio livre, hacklab, hardware livre, atividades com os Pataxós, ritual, geodésica, ayauaska, videomaking, luzes brilhantes, terreiro eletrônico, cozinha vegana, ônibus hacker, performances… Dentre os presentes: DJs, vídeo makers, hackers, artistas, malabaristas, cozinheiros, ativistas, quilombolas, indígenas, pensadores, acadêmicos, místicos, feministas, permacultores, atores, ambientalistas, performáticos, palhaços e travestis. Se o novo não sai de um festival tal que se propõe a debater a relação entre magia e tecnologia à partir de uma perspectiva de dominação tecnológica do mundo e de mentes em regime de imersão com todos os estímulos listados acima, então não sei de onde sai.

Acabou o festival e não saiu. Ai como eu estou cansada dessa energia de frustração na minha vida! Há 4 anos que não fiz nada da vida a não ser buscar de onde vai sair esse movimento verdadeiro de mudança e criação do novo. E é sempre a mesma coisa. Tudo começa lindo, cheio de amor e parcerias. Aos poucos os egos crescem, as pessoas revelam seu lado de desinteresse pelo mundo e priorizam seu prazer e finanças acima de tudo. Durante o festival a galera ia pra praia, virava noite tomando quetamina e fazendo orgias. Taí um desafio: zumbis que querem repensar tecnologia e salvar os indígenas. Poucas pessoas compartilharam conhecimento abertamente. O misticismo foi decoração. Todo mundo atrasado pra tudo. Descaso com o que fazíamos ali. Era tudo diversão intelectual punk? Estava eu no meio de gênios alternativos entediados?

Os meses que se seguiram? Ela sumiu. Foi ficar famosa. Colher sozinha todos os frutos plantados coletivamente. Deu nosso programa por encerrado. “É uma obra.” E foi viajar o mundo sentando em mesas e brilhando em aldeias indígenas.

Até quando irão me decepcionar os líderes? Eu não suporto essa coletividade sem liderança. Essa horizontalidade irresponsável e demorada. Esse consenso bate-boca que não consegue implementar. Essa falta de humildade de ouvir o que tem mais experiência. Esse ego anarquista do ninguém manda em mim. Eu quero organização, confiança e admiração. Ordem, objetivo e meta. Doação voluntária de poder e liberdade de tomá-lo de volta a qualquer momento. Escolha. Transparência. Intimidade. Raça. “Um dia quero ser que nem ele”.

Mas é cada um pior que o outro. Puta merda. Não é possível ser liderado por quem não se admira. Esta muito difícil para uma pessoa sensível admirar alguém nesse mundo à partir do momento que a percepção do outro vem da necessidade e motivação por trás. Mas ela eu admirava demais. Um encantamento carente e barato disposto a abrir mão da perfeição em troca de tamanha gratidão pelo mundo a mim aberto. Pela oportunidade de entrar em contato com aquela energia, aquele fogo, aquela mente, aquela arte. Finalmente aprendi que não se pode abrir mão. Na busca pelo movimento verdadeiro, somente um líder absolutamente verdadeiro pode ser seguido. Se não é energia jogava no lixo. Nada pior do que o brilho da vaidade no olho daquele que te guia.

[NOTE TO SELF] Lembre-se sempre: um líder verdadeiro não se assusta quando você cresce, ele se fortalece porque sabe que você é um reflexo de sua liderança. Um líder verdadeiro quer é que você cresça tanto que tome seu lugar e sua missão evolua. Ele te incentiva, SEMPRE. Um líder falso não te deixa crescer, quer te manter onde esta porque tem medo de perder seu pódio de número um. Tem medo de perder a admiração do outro. Tem medo de perder o controle. Mas quem tem medo de perder o controle não está no controle. Quem deseja manter as coisas como estão para se garantir é o [MST] que vai manter você em um movimento medíocre ganhando um salário fixo para fazer um role político qualquer que vai mudar uma linha em um documento em 10 anos (ou uns 10 mil reais em um orçamento blá). Vai te fazer umas críticas pequenas, te dizer que você não está pronto, que precisa de mais um diploma, mais uma especialização, mais uma participação em uma peça audiovisual. Um falso líder vai se importar com coisas mínimas como logos, fanpages, administração de redes sociais, coordenações e nomes para mesas. Qualquer micro ilusão que tire o olhar da macro situação histórico-planetária que vivemos. Para te manter sob seu controle, um falso líder te oferece um pouquinho mais de poder do que os outros só pra você saber que você é o preferido. Um falso líder explora seu trabalho em troca de promessas possibilidades.

E eis que o conceito se tornou aquilo que era diferença antes. Hoje em dia, Tecnoxamanismo é uma ideia extremamente materialista, voltada para a reprodução criativa de rituais e misticismo através de luzes pisca-pisca e performances trans com trajes chocantes (capas, silicone, fitas, palha, chips e durepox). Vem inovando a estética hacklabista e, talvez, incentivando a religião da tecnologia, adoração do silício e extropismo. Os rituais são reproduções bollywoodanas de cenas pagãs trocando as ervas pelas máquinas. O contato com os espíritos é simbólico através do noise, ruídos baixados no PirateBay e tocados no Itunes. Apropia-se de qualquer termo fantasioso e ressignifica-o com a linguagem da cibercultura criando novos personagens e arquétipos vazios de espírito mas suficientemente recheado para publicar-se mais um artigo ou sentar-se em mais uma mesa. Quem sabe dar uma passada na Dinamarca.

A parte do xamanismo conectou-se totalmente com a causa indígena, conectando a cultura hacklab software livre com a necessidade de educação tecnológica nas aldeias. Além de fazer um ativismo pelos conhecimentos ancestrais indígenas enquanto alta tecnologia ambiental (o que eu acho bem legal). Mas onde estão os verdadeiros xamãs no Brasil? Os poucos legítimos que ainda existem estão reservados no interior da floresta, não estão nem sonhando com tecnoxamanismo e, pessoalmente, acho bom que fiquem bem longe de todas essas máquinas mesmo. Um ou outro xamã evangélico tira umas fotos e endossa o #TCNXMNSM mas pra onde foi todo aquele debate místico pesado que fazíamos? Pra mim, quando falávamos de xamanismo, falávamos de magia total. O xamanismo indígena sendo um deles apenas. Falávamos de astrologia, ufologia, tarot, magia do caos, umbanda, espiritismo, leitura de aura, fogo sagrado, clarividência… O que aconteceu com a minha tão amada magia open source? Eu sempre defendi que todo ser humano é xamã ou pode se desenvolver bastante nessa vida para ser na próxima. Que era hora de abrir novas potencialidades humanas na disputa evolucionária que vivemos (e perdemos) agora: homem x máquina. Que era magia versus computador na veia. Todo meu respeito ao povo indígena que amo e admiro demais mas tecnoxamanismo é mais que isso. É xamanismo urbano, siberiano, kardecista… É o corpo humano funcionando em seu pleno potencial. É o sexto sentido a flor da pele. Conexão animal com o coqueiro da praia de Ipanema. Ecovilas. Permacultura. Meditação das Rosas. Festivais de Trance. Bitcoin. E como tudo isso se conecta com os novos tempos, com as novas máquinas? Máquinas artesanais. Máquinas locais. Máquinas que manipulam energia. DJs xamãs. Telepatia.

E agora é isso: Tecnoxamanismo, essa palavra tão poderosa, capaz de fazer com que pessoas viagem 20 horas de ônibus só para descobrir o que é, tomado por um ego acadêmico. Reduzido a imagens projetadas em tecidos brilhantes e debates/artigos acadêmicos rebuscados e inovadores que se apropriam de termos indígenas e mitológicos mas que quase ninguém vê nem lê. Sendo usado como pretexto de carona pra dar uma volta pelo mundo e escada na carreira de um única pessoa. Esquecido pela rede que, decepcionada, deixou de se comunicar.

Muito feio. Me senti usada. E jogada fora. Mas não é a primeira pessoa a ignorar o valor da minha energia investida no seu talento. Jurei que seria a última.

Mas sou muito grata. Se não fosse pelo tecno, o xamanismo nunca teria entrado na minha vida. Sigo vivendo a minha diferença de conceito. Estudando. Aqueles meses de debate e criação finalizados com aquele escândalo de festival serviram para definir grande parte do que eu quero fazer na minha vida. Me abriu os olhos para o estado tecnológico futurista absolutamente apocalíptico que se aproxima. Aprendi demais. Não só sobre a tecnomagia mas também sobre a promiscuidade travestida de feminismo e o feminismo que faz sentido pra mim. Aprendi muito sobre loucura, sobre autenticidade e vaidade. Mas, acima de tudo, descobri que OS ROBÔS ESTÃO CHEGANDO e não temos tempo a esperar. Em 10 anos eles estarão entre nós. E nós precisamos ter bons motivos para continuar vivos. Precisamos fazer coisas que eles jamais saberão fazer. Precisamos relembrar a magia. Rápido.

Uma coisa é certa: eu amo essa palavra. E minha história com ela está apenas começando.

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