Já faz alguns anos que Joelma optou por abandonar o mundo. Se mudou para uma cabaninha aos pés dos Himalayas que encontrou no Air BnB. É uma cabana de poucos metros quadrados, o forno fica ao lado da cama, assim ela não precisa de levantar nem pra cozinhar. Ela se levanta pouco mesmo. Passa quase o tempo todo deitada, olhando pro teto, pensando no seu passado, nas suas perdas, nos seus erros e desgostos. O problema dela é que foi feliz demais.
Tudo com ela sempre foi demais. Muito intensa, signo de água com ascendente em fogo. Nunca estava satisfeita, tinha uma fome de vida. Fome de conhecimento, de experiências, de drogas, de viagens, de homens, de amigos… Tinha cinco grupos de amigos. Um só de mulheres e os outros mistos. Não podia perder nenhum evento, queria manter o contato com todas as pessoas que passavam pela sua vida. Colecionava pessoas. Mal as conhecia, já adicionava no facebook, o catálogo de sua coleção. Toda vez que entrava, a primeira coisa que fazia era passar os olhos rapidamente no seu número de amigos e ver o quanto tinha aumentado desde a última vez que se conectou. Algumas dessas pessoas eram tão importantes que ela tatuava na sua pele para eternizar. Nunca tinha perdido um amigo sem querer. Todos adoravam sua energia meio almodóvar, meio louca, meio livre, meio animada, meio tô nem aí dela. Era com ela que todos sonhavam em fazer uma viagem de mochilão. Eles diziam que ela devia ser uma companhia de viagem muito boa e isso a enchia de satisfação, era exatamente esse tipo de pessoa que ela queria ser.
Ela queria ser muitas coisas. Estava sempre mudando. Mas uma coisa que não mudava nunca era a sua vontade de ser diferente. Talvez isso tivesse a ver com o inconsciente coletivo da humanidade de culpa, talvez ela quisesse se provar diferente das mulheres da sua família, talvez quisesse se destacar e ser especial e acreditava que a diferença é o que lhe daria esse status. Ela queria ser uma pessoa muito diferente das outras e queria fazer tudo diferente, viver uma vida totalmente diferente das outras pessoas. Ela projetava essa diferença na maneira que se vestia, na maneira que falava, nos homens que namorava, nas viagens que fazia, usava um rabo de cavalo todo bagunçado para deixar claro que não se encaixava em padrão algum.
Ela construia sua personalidade copiando pequenas coisas de várias pessoas. Seu jeito de dançar com os ombros era igual o da Claudia, com os quadris iguais o da Julia e o olhar igual ao da Jéssica. Suas expressões de fala eram uma coleção de frases e sotaques que ouviu de alguém ou na televisão e achou legal. Seu estilo era o oposto da sua mãe, com o tênis que a prima usava e as meias que um ficante lhe deu de presente. Ela andava com um caderninho de notas para todos os lugares e anotava informações úteis para essa construção de personalidade idealizada. Músicas, lojas, lugares, filmes, pessoas que deveria seguir no instagram… Essas informações eram muito importantes para ela.
E ela zoava muito. Se amava loucamente, se achava exatamente tudo que ela deveria ser. Ela tinha uma confiança profunda na vida. Uma certeza absoluta que tudo ia dar certo. E assim ela entrou na faculdade de Direito. Ela não sabia muito bem o que queria fazer, foi meio na intuição, achava legal a maneira chique que os advogados se vestiam. Ela nunca questionou muito essa escolha de estudar em uma universidade, era o próximo passo natural após a escola. Queria muito se encontrar ali. Ser alguém importante, alguém bem sucedida e ser muito feliz.
Não demorou muito para se apaixonar perdidamente. Joelma tinha uma capacidade de amar enorme. Ela amava qualquer um, qualquer coisa, qualquer ideia, qualquer lugar. Era só chegar que ela estava amando. Ela achava todo mundo irado, único e especial e por isso as pessoas gostavam tanto da sua companhia. Perto dela, todos brilhavam. Mas era ela que sempre brilhava mais. Se apaixonou sem pé nem cabeça e sem nenhuma garantia. Foi assim que lhe ensinaram que o amor acontecia. “A gente não escolhe quem a gente ama.” Ele gostava dela também, especialmente de transar com ela. Ela o admirava enlouquecidamente, passava horas falando dele pra todas as amigas. Ele era tão diferente! Tão inteligente! Tão corajoso! Ela falava sobre todas as suas qualidades porque no fundo queria engolir aquelas qualidades todas pra si. Sentia que ter um homem assim ao seu lado lhe dava algum tipo de garantia de que ela também era tão diferente! Tão inteligente! Tão corajosa!
Ela arrumou o emprego dos seus sonhos! Era uma empresa americana então ela estava sempre tendo que ir à Nova Iorque para reuniões e treinamentos. Seu amor trabalhava na mesma área então eles se conectaram bastante pelo trabalho. Ela A-M-A-V-A o seu chefe. Ele era um velhinho texano desses repúblicanos meio preconceituosos que ela achava uma figura! Parecia que ele tinha saído direto de um filme. E ele também desenvolveu um afeto pela estagiária querida. Uma relação meio paternal! Como ela não falava com seu próprio pai há anos e nem sentia a mínima falta, ela acabou aceitando esse papel para o seu chefe.
Nessa época ela perdeu vários amigos porque esse amor tão intenso por esse homem e esse novo chefe que saciava um pouco sua fome de pessoas. Pela primeira vez ela focou toda sua atenção e seu amor em um lugar só. Ela tinha certeza que se casaria com ele e que aquele emprego era o seu caminho. Pensava até em largar a faculdade, já não precisava mais de um diploma. “She made it!” Essas pessoas que ela foi perdendo, ela nem percebeu. Nunca tinha valorizado seus amigos antes porque eles vinham com tanta naturalidade. Ela tinha tantos e tanta capacidade de fazer novos amigos. Seu jardim era todo florido, sem nenhum esforço. Então foi perdendo algumas flores mas tudo bem, não estava acostumada com a ideia de cultivá-lo mesmo.
Sua vida toda era uma maneira de saciar essa sua fome. E fome é sinônimo de vazio.
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