Dança e Debate

O festival começa com um longo debate sobre a humanidade e a nova realidade coletivamente criada. O debate começa de maneira espontânea, já virou a maneira correta de começar. Toda a dança de depois será baseada no clima da discussão. A cada festival, um tema chega intuitivamente. Alguém puxa alguma reflexão aleatória sobre o mundo e daí as ideias fluem livremente. Tudo facilitado de maneira autônoma, a roda facilita a si mesma. Já aconteceu do debate durar o festival inteiro, algumas pessoas mantendo o fogo central aceso e as ideias periféricas aquecidas. Quando se chega em reflexões por demais profundas, que normalmente vão de encontro com o acúmulo histórico de toda reflexão que já foi produzida anteriormente, em todos os tempos, em todos os lugares, é preciso ir pra pista.

Na pista, os espíritos auxiliam os rumos que as reflexões precisam tomar. Os aditivos psicodélicos permitem o contato com outras realidades, outras ideias, outras dimensões. Rituais nascem espontaneamente no transe induzido pelo trance e atinge-se uma clareza maior sobre aquilo que se está repensando e criando. Pede-se ajuda e dança-se para recebê-la. Aqui a facilitação é feita pelos xamãs, que se conectam com o invisível de maneira quase imperceptível mas vão a outros lugares, outros tempos, só pra retornar com algumas respostas que serão novamente debatidas. São muitos os que estão se descobrindo xamãs nessa linha tecnológica do trance. Nem sempre aquilo que é o indicado pelos espíritos é acolhido pelos homens, afinal, os homens são antes de tudo, livres. E este mundo que está sendo repensado é, antes de tudo, dos homens.

Um grupo que se reconhece com a mão no coração puxa essa função ritualística de criação nos festivais dando um sentido maior para o ato de debater e dançar ao mesmo tempo. A cada festival que invadem, outros se juntam a eles porque compreendem que aqui tem algo de especial, aqui alguma coisa está sendo construída de uma maneira nova. Eles são nômades tecnoxamãs, que se alimentam da inovadora experiência tribal proporcionada pela arte e tecnologia dos festivais de trance para inicialmente refletir e depois manipular as energias estagnadas da realité.

Durante os intervalos entre os festivais, eles escrevem suas percepções dessa nova forma sagrada de interagir com a tecnologia de maneira a criar uma nova realidade ou repensar a antiga. Eles aprendem muito nos processos de cura que acontecem na pista de dança e se apoiam mutuamente no registro daquilo que foi vivido. Todo o conteúdo produzido é sistematizado e assim serve de auxílio para futuros debates, embora nada seja nunca passível de cristalização, todas as ideias são repensadas o tempo todo. A maneira de pensar e de se comunicar é diferente, ela vem em fluxos e ciclos. Ela abraça as imperfeições humanas com amor e respeito às diferenças. Por horas ela não faz nenhum sentido, é daí que nascem as melhores ideias. O mais importante daquilo que é produzido são mesmo as perguntas que não se consegue responder.

O que é ser humano? O que vamos criar? Como vamos criar? Que conceitos precisam ser debatidos? Que conceitos precisam ser ressignificados? Quais são as ideias que nos foram roubadas? Que ideias vamos roubar? O que é roubo? O que não é aceitável? Existe certo e errado? O que é o corpo? O que é a mente? O que é o espírito? Qual a função do DJ? Onde está Deus? Quais são as forças opostas na dança? De onde vem a cura?

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