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Jonas

Jonas acredita que não vai conseguir. Durante a separação de seus pais, Jonas passava muito tempo com sua velha avó Angelina. Como a maioria de sua geração, Angelina já foi tomada pelo negativo. Tudo é perigoso! Tudo é uma ameaça! Tudo é errado. Tudo é ruim. Angelina falava para Jonas do mundo na época em que seu mundo caiu. E pra ela o mundo era mau. Ela mesma não era lá uma pessoa muito boa não, já estava viciada no prazer de ver e falar de desgraça. Seus assuntos favoritos eram: falta de dinheiro, gordura e câncer.

Jonas ficou muito abalado com a separação de seus pais e com a queda de seu mundo perfeito. Até então, tinha uma família de comercial de margarina. Após o divórcio, sua mãe precisou ir trabalhar e ele acabou ficando a mercê das ideias dessa avó.

Essa foi a época em que ele começou a fazer terapia. Ele chegou no consultório do mais badalado psiquiatra na cidade de Nova Friburgo. Muito bem recomendado por uma das amigas socialites da mãe. Se sentou no sofá esperançoso. Alguma coisa não estava bem com ele, sua vida estava muito difícil. Ele contou brevemente para uma psicóloga responsável por diagnosticar adolescentes que durante alguns meses ele se sentia bem e durante outros nem tanto. Os olhos dela demonstravam bastante atenção e compreensão do problema. Após essa breve explicação ela olhou pra ele e disse: “Jonas, você é bipolar!”. E pronto. Ele saiu de lá com uma lista de 8 remédios que precisaria tomar pelo resto de toda sua vida. Estava diagnosticado com um problema mental incurável.

Foi um alívio para Jonas, para Angelina e sua mãe. Estavam explicadas todas essas emoções. Esse menino não era normal! Esses ataques de raiva, essas pequenas depressões. Estava sol e ele não ia pra praia! Essa necessidade de se embebedar. Jonas começou a tomar os remédios. Ele se sentia aliviado e ao mesmo tempo especial. Como se ele tivesse uma secreta explicação por toda sua infelicidade e a capacidade de curar todos seus problemas com algumas bolinhas. Ele tinha 18 anos e tomava 8 remédios. Nas primeiras semanas de tratamento ele se sentiu calmo como nunca antes em toda sua vida. Era como se tivesse num estado completamente diferente. Estava feliz. Receptivo. Focado. Depois foi se acostumando com aquele estado e com aquele diagnóstico, até contou pra alguns amigos, começou a se identificar com aquele traço da sua personalidade. Ele era bipolar.

Um dia sua avó teve uma de suas brilhantes ideias! Invalidar Jonas perante o estado para conseguir uma pensão! Primeiro ela entrou em contato com uma amiga advogada. Depois coletou todas as provas necessárias. Pegou os diagnósticos, as receitas de remédios, contas de analistas e, por fim, convenceu Jonas de que ele nunca ia conseguir ganhar seu dinheiro sozinho, que ele seria MALUCO de não aceitar essa pensão, que todas as pessoas do mundo gostariam de estar em seu lugar, vida fácil. Seu pai não estava dando nenhum centavo de pensão e ela não podia sustentar aquele estilo de vida sozinha. O trabalho de sua mãe quase não rendia nada.

Jonas acabou aceitando a ideia de sua avó. Já que ele era bipolar mesmo, porque não ajudar a família e ser pago por isso? Angelina o treinou perfeitamente para o dia de sua perícia. Ela ditava tudo que ele precisava falar para que achassem ele bem maluco mesmo. Fazia trejeitos, seus olhos enchiam de lágrimas (ela o incentivava a chorar se ele conseguisse). Jonas ouvia tudo bem concentrado pra não errar.

Os peritos acreditaram que Jonas era maluco mesmo. Três especialistas resolveram lhe pagar pela sua loucura. E assim essa loucura passou a sustentar sua mãe e irmã no bairro mais nobre de NF, no estilo de vida de ricos que sempre tiveram antes do divórcio. Desde então, todo ano Jonas passou a passar por essa perícia. Cada ano que passava ele ia ficando melhor.

Ele mudava de analistas e de remédios o tempo todo mas sua avó só pagava os analistas que ela escolhia. E ela só escolhia aqueles que concordavam de início com o diagnóstico que lhes dava o seu sustento. Um dia Jonas ficou sabendo de um analista muito bom! E começou a fazer análise com ele. Este era diferente dos outros, ele lhe dizia que Jonas não era bipolar, ninguém nem sabia se bipolaridade de fato existia. Era impossível dar esse diagnóstico tão rapidamente como lhe foi dado pela psicóloga especialista em adolescentes. E explicou pra Jonas que este diagnóstico era muito perigoso. Ele sustentar a sua família por causa da sua loucura era mais perigoso ainda. A mente responde ao que ela acredita ser. Jonas teve que sair deste analista porque sua avó não gostou dele.

Toda vez que Jonas questionava essa loucura, sua avó dizia pra ele que tem muita gente bipolar que vive uma vida normal. Ser bipolar é tipo usar óculos, meu netinho. Só tomar seus remedinhos que tudo ficará bem. Quando as coisas ficavam ruins mesmo, eles saiam e gastavam o dinheiro que Jonas ganhava em roupas e sapatos. Mas ele nunca tocava no dinheiro, quem administrava tudo era sua mãe, ela andava com um talão de cheques assinado por ele, cartão de crédito no seu nome, conta corrente conjunta. Ele recebia uma mesada um pouco mais alta do que a que todo adolescente deve  receber.

Quando Jonas se revoltava mesmo, elas lhe diziam que ele não era maluco, nem bipolar. Era só um jeitinho de ajudar em casa. Que ele ficasse tranquilo.

Não demorou muito pra Jonas começar a apresentar seu diagnóstico na sua vida. Começou a entrar em crises de depressão mais profundas e crises de mania intensas. E assim foi ficando cada vez melhor na perícia. Era só ele chegar lá e falar a verdade. Angelina inclusive, parou de o treinar e passou a instruí-lo a fazer exatamente isso. É só você chegar lá e contar o que está se passando com você, meu netinho.

Angelina sempre disse para Jonas que ele era a pessoa que ela mais amava nesse mundo.

Joelma

Já faz alguns anos que Joelma optou por abandonar o mundo. Se mudou para uma cabaninha aos pés dos Himalayas que encontrou no Air BnB. É uma cabana de poucos metros quadrados, o forno fica ao lado da cama, assim ela não precisa de levantar nem pra cozinhar. Ela se levanta pouco mesmo. Passa quase o tempo todo deitada, olhando pro teto, pensando no seu passado, nas suas perdas, nos seus erros e desgostos. O problema dela é que foi feliz demais.

Tudo com ela sempre foi demais. Muito intensa, signo de água com ascendente em fogo. Nunca estava satisfeita, tinha uma fome de vida. Fome de conhecimento, de experiências, de drogas, de viagens, de homens, de amigos… Tinha cinco grupos de amigos. Um só de mulheres e os outros mistos. Não podia perder nenhum evento, queria manter o contato com todas as pessoas que passavam pela sua vida. Colecionava pessoas. Mal as conhecia, já adicionava no facebook, o catálogo de sua coleção. Toda vez que entrava, a primeira coisa que fazia era passar os olhos rapidamente no seu número de amigos e ver o quanto tinha aumentado desde a última vez que se conectou. Algumas dessas pessoas eram tão importantes que ela tatuava na sua pele para eternizar. Nunca tinha perdido um amigo sem querer. Todos adoravam sua energia meio almodóvar, meio louca, meio livre, meio animada, meio tô nem aí dela. Era com ela que todos sonhavam em fazer uma viagem de mochilão. Eles diziam que ela devia ser uma companhia de viagem muito boa e isso a enchia de satisfação, era exatamente esse tipo de pessoa que ela queria ser.

Ela queria ser muitas coisas. Estava sempre mudando. Mas uma coisa que não mudava nunca era a sua vontade de ser diferente. Talvez isso tivesse a ver com o inconsciente coletivo da humanidade de culpa, talvez ela quisesse se provar diferente das mulheres da sua família, talvez quisesse se destacar e ser especial e acreditava que a diferença é o que lhe daria esse status. Ela queria ser uma pessoa muito diferente das outras e queria fazer tudo diferente, viver uma vida totalmente diferente das outras pessoas. Ela projetava essa diferença na maneira que se vestia, na maneira que falava, nos homens que namorava, nas viagens que fazia, usava um rabo de cavalo todo bagunçado para deixar claro que não se encaixava em padrão algum.

Ela construia sua personalidade copiando pequenas coisas de várias pessoas. Seu jeito de dançar com os ombros era igual o da Claudia, com os quadris iguais o da Julia e o olhar igual ao da Jéssica. Suas expressões de fala eram uma coleção de frases e sotaques que ouviu de alguém ou na televisão e achou legal. Seu estilo era o oposto da sua mãe, com o tênis que a prima usava e as meias que um ficante lhe deu de presente. Ela andava com um caderninho de notas para todos os lugares e anotava informações úteis para essa construção de personalidade idealizada. Músicas, lojas, lugares, filmes, pessoas que deveria seguir no instagram… Essas informações eram muito importantes para ela.

E ela zoava muito. Se amava loucamente, se achava exatamente tudo que ela deveria ser. Ela tinha uma confiança profunda na vida. Uma certeza absoluta que tudo ia dar certo. E assim ela entrou na faculdade de Direito. Ela não sabia muito bem o que queria fazer, foi meio na intuição, achava legal a maneira chique que os advogados se vestiam. Ela nunca questionou muito essa escolha de estudar em uma universidade, era o próximo passo natural após a escola. Queria muito se encontrar ali. Ser alguém importante, alguém bem sucedida e ser muito feliz.

Não demorou muito para se apaixonar perdidamente. Joelma tinha uma capacidade de amar enorme. Ela amava qualquer um, qualquer coisa, qualquer ideia, qualquer lugar. Era só chegar que ela estava amando. Ela achava todo mundo irado, único e especial e por isso as pessoas gostavam tanto da sua companhia. Perto dela, todos brilhavam. Mas era ela que sempre brilhava mais. Se apaixonou sem pé nem cabeça e sem nenhuma garantia. Foi assim que lhe ensinaram que o amor acontecia. “A gente não escolhe quem a gente ama.” Ele gostava dela também, especialmente de transar com ela. Ela o admirava enlouquecidamente, passava horas falando dele pra todas as amigas. Ele era tão diferente! Tão inteligente! Tão corajoso! Ela falava sobre todas as suas qualidades porque no fundo queria engolir aquelas qualidades todas pra si. Sentia que ter um homem assim ao seu lado lhe dava algum tipo de garantia de que ela também era tão diferente! Tão inteligente! Tão corajosa!

Ela arrumou o emprego dos seus sonhos! Era uma empresa americana então ela estava sempre tendo que ir à Nova Iorque para reuniões e treinamentos. Seu amor trabalhava na mesma área então eles se conectaram bastante pelo trabalho. Ela A-M-A-V-A o seu chefe. Ele era um velhinho texano desses repúblicanos meio preconceituosos que ela achava uma figura! Parecia que ele tinha saído direto de um filme. E ele também desenvolveu um afeto pela estagiária querida. Uma relação meio paternal! Como ela não falava com seu próprio pai há anos e nem sentia a mínima falta, ela acabou aceitando esse papel para o seu chefe.

Nessa época ela perdeu vários amigos porque esse amor tão intenso por esse homem e esse novo chefe que saciava um pouco sua fome de pessoas. Pela primeira vez ela focou toda sua atenção e seu amor em um lugar só. Ela tinha certeza que se casaria com ele e que aquele emprego era o seu caminho. Pensava até em largar a faculdade, já não precisava mais de um diploma. “She made it!” Essas pessoas que ela foi perdendo, ela nem percebeu. Nunca tinha valorizado seus amigos antes porque eles vinham com tanta naturalidade. Ela tinha tantos e tanta capacidade de fazer novos amigos. Seu jardim era todo florido, sem nenhum esforço. Então foi perdendo algumas flores mas tudo bem, não estava acostumada com a ideia de cultivá-lo mesmo.

Sua vida toda era uma maneira de saciar essa sua fome. E fome é sinônimo de vazio.