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Cumbre de los Pueblos… De novo.

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Hoje começa a Cúpula dos Povos em Lima. A Cúpula dos Povos é um grande evento realizado pelos movimentos sociais internacionais durante esses períodos de conferência e falácia das Nações Unidas. Durante o evento, organizações de esquerda, mulheres, indígenas e outras minorias fazem exposições, debates, mesas e workshops sobre suas lutas. É uma agenda cheia de opções para quem quer ver a realidade da situação climática tão ocultada pelo discurso apaziguador e tecnicista dos negociadores e exploradores da natureza que debatem mais fundos e trâmites econômicos como propostas de redução de danos e emissões para solucionar a crise climática global.

A cúpula é organizada por uma comissão política que é uma articulação entre diversas organizações, redes e movimentos. Eu acompanhei essa comissão durante a Rio+20, chamávamos de Comitê Facilitador da Sociedade Civil para Cúpula dos Povos na Rio+20. E foi uma loucura. Não sei como foi essa organização aqui no Peru, mas no Brasil foi um dos ambientes mais hostis dos quais já participei na minha vida, a rede de movimentos que deveria estar afinada para realizar o principal evento de contestação da cidade não conseguia dialogar entre si, era muita política, muita negociação, muita diferença e, no final das contas, essa desorganização política se refletiu no próprio evento. A Cúpula dos Povos na Rio+20 não tinha sequer programa impresso, ninguém sabia onde ficavam as atividades, o hacklab do movimento software livre foi todo assaltado e muitos equipamentos valiosos levados, além de ter transmitido ao público a impressão de ser uma grande feira de artesanato.

Não foi tudo um desastre. Muitos eventos inspiradores aconteceram, a metodologia de construção da declaração final foi muito bem pensada, muitos movimentos conseguiram se alinhar e ter suas vozes e pautas unidas em um único documento. Muitas alternativas foram expostas e mentes libertas de antigos paradigmas. Alguns ativistas descreveram a cúpula como “um grande parque de diversões políticas” de tanto que conversaram, trocaram, sentiram e aprenderam ali.

Mas… de que serviu todo aquele trabalho? Aquele ano e meio de reuniões, debate, disputa, estresse e decepção? Algumas pessoas descobriram novos caminhos, outras pessoas criaram novos projetos, alguns jovens se descobriram ativistas… Mas seguimos em direção ao apocalipse. Dois anos depois, aqui estamos, mais uma vez na exata mesma dinâmica, só que um pouco mais simples. Aqui são três dias de evento e os eventos não são tão variados como eram na Rio+20. Mas são os mesmos…

http://cumbrepuebloscop20.org/agenda/

Será que ninguém mais percebe esse ciclo de repetição idêntico? Estamos presos nesse modus operandi que é um grilhão mental sendo arrastado pelas energias de produção coletiva de todos aqui. Mais uma conferência da ONU com ONGs enormes em seus side events e workshops internos, mais uma Cúpula dos Povos com seus seminários e debates de exposição e constrangimento dos que estão do lado de dentro. Mais 15 dias de reuniões ininterruptas para pensar uma única marcha, algumas hastags, alguns abaixo assinados, estratégias de alguma coisa, pressão de outra coisa…

Mas o que estamos fazendo com toda essa dinâmica política é dando poder a este processo! É dando importância e relevância para estes negociadores e lobistas que já estão tão profundamente tomados por seus egos e vício em poder que talvez não estejam nem mais vivos. Talvez não tenham alma alguma dentro deles (estou falando literalmente). Estamos tentando convencer alguns zumbis de que precisamos respirar e beber água para viver. Como podemos esperar que zumbis vão compreender a linguagem da vida? E estamos os alimentando energéticamente com toda essa energia produtiva sendo investida nisso. São vampiros que precisam destas conferências e destas mobilizações para sobreviver, consomem esta energia de jovens guerreiros que acreditam que estão sendo úteis para alguma coisa. Que se forem a mais uma reunião vão encontrar a solução, que se saírem pelas ruas pegando mais cem assinaturas alguma coisa vai acontecer… Não vai. Ano que vem será a mesma coisa. Mas com mais energia para zumbis ainda maiores. Ano que vem estamos falando te metas do milênio em Paris. Que piada… Metas do milênio…

Precisamos começar a compreender as dinâmicas invisíveis que acontecem por trás dos processos racionais da matéria. Observar as marés de energias que são movimentadas com toda essa atividade e valorizar isso. Dar valor a nossa energia, dar valor aos nossos sonhos. Parar de aceitar essa receita de ativismo que não dá em nada.

E lá vamos nós… Fazer tudo de novo. Já tem reunião no Pirate Pad do Children and Youth Caucus da sociedade civil para Paris rolando a cada 15 dias. E pessoas preocupadas com esse processo, dando valor a algo que é uma miragem. Uma ilusão da matéria.

Dois anos depois…

Em Dezembro de 2011 fui à COP (Conference of the Parts / UNFCCC – United Nations Conference on Climate Change) em Durban na Africa do Sul. Fazia um ano que eu estava profundamente envolvida com a organização e mobilização de jovens para Rio+20 e fui através de uma organização internacional que forma jovens para incidirem na conferência. Eu não tinha ideia do que me esperava mas minhas expectativas eram positivas, eu estava ansiosa para vivenciar aquilo que eu vinha estudando e discursando há tanto tempo. Eu acreditava nesse processo como estratégia de mudança de paradigma, gestão dos recursos naturais globais e controle das corporações que estão devastando o planeta como se fosse infinito e descartável.

Foi uma das, senão A, maiores decepções de toda minha vida. Quando cheguei na conferência, percebi que estava em um grande teatro, um grande cenário de uma encenação de preocupação com a natureza e a humanidade. Dos governos isso já era esperado, estão absolutamente alinhados com os verdadeiros donos do mundo, as transnacionais. Mas o meu grande choque foram as ONGS. Eu não compreendia em quê aquela grande feira de demonstração de projetos e atuação e troca de cartões de visita estava contribuindo para a causa.

O espaço da conferência se divide em três arenas. Uma das negociações onde somente as delegações oficiais e negociadores podem transitar, outras das ONGS que é essa grande feira de exposição e salas de eventos múltiplos, um grande caderno de programação auxilia com descrições e locais mas além disso murais são preenchidos ao longo dos 15 dias de conferência com novos eventos criados de acordo com necessidades. Não há um segundo sequer de tempo livre, são mesas, debates, apresentações, reuniões, assembleias infinitas. Estas duas arenas tem entrada restrita para aqueles que tem credenciamento (delegados, ONGs e jornalistas). A terceira arena é a dos empresários, esta aberta ao público que transita pela rua ou que tem curiosidade para compreender o que se passa em sua cidade. Quando entramos nesta arena, vemos produtos de baixo gasto de carbono, água limpa… Tudo mercantilização da natureza e da vida disfarçada de amigo da mãe terra. E muita desinformação.

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Dentro da conferência, muitos dos maiores ativistas do mundo ocupados com blogs e reuniões. Grandes organizações ocupadas e divididas entre milhares de eventos e networking. Todos muito bem comportados, valorizando sua relação com as Nações Unidas que financia muitos de seus projetos ao longo do ano. Não se pode nem distribuir um flyer ali dentro. O ato de esticar o braço para entregar algum papel informativo ali pode causar a sua expulsão do território internacional. E tudo bem. São 15 dias em que se acompanham as negociações, se debate pelo corredor, produz-se conteúdo jornalístico, abaixo assinados tipo Avaaz e os jovens ainda pensam em algumas ações que podem realizar pela cidade e estratégias de mobilização para a grande marcha tradicional que acontece mais pro final. Alguns representantes e grupos conseguem breves reuniões com negociadores e colocam alguma pressão para um afrouxamento da irresponsabilidade e da cegueira. No último dia faz-se uma ação qualquer lá dentro em revolta com os resultados sempre insatisfatórios considerando as mais baixas das expectativas e aí muitos são expulsos da conferência. No último dia.

Eu nem fui neste último dia. Tive alguns problemas com a minha organização porque, no início da segunda semana, peguei 700 adesivos de uma campanha que estava sendo feita sorrateiramente lá dentro entre os próprios ativistas: “I <3 KP” (Eu amo Protocolo de Kyoto) e colei por toda a conferência, por todos os lados, atrás das câmeras da grande mídia, pedia para negociadores colarem onde eu não alcançava, fechava armários dos países que estavam dificultando ou sequer debatendo o protocolo… Eventualmente a polícia me pegou. Me levou ao secretariado e o chefe da organização veio para proteger sua relação com as Nações Unidas. Fui bastante repreendida. Não fui expulsa mas depois daquilo percebi que ali dentro, independente se é delegado, ONG ou empresário, estão todos articulados com aquele modus operandi que é confortável e seguro. Cada um finge que faz a sua parte e no final não passa de uma formalidade para não dizer que a humanidade está cagando para o ar que respira, a água que bebe e o planeta que habita.

A verdade é que estão todos muito confortáveis com esse universo das conferências e do movimento climático ambiental. Os governos e as corporações com seus modos de manipular e restringir a atuação além de investimentos mínimos em áreas e projetos pouco relevantes e as organizações e ativistas dependentes destes processos para simplesmente ter o que fazer. Como não temos nenhuma proposta melhor para salvar a natureza e sentimos uma ânsia por fazer alguma coisa, acabamos incidindo nestes processos seja para participar das negociações enquanto sociedade civil, seja para contestá-los. E é a mesma coisa: reuniões, encontros, cúpulas, comunicação, marchas, campanhas, design, mobilização e artivismo. Algumas ações de sabotagem aqui e ali.

Dois anos depois retorno para um cenário novo. Lima, Peru. COP20. Casa de Convergência TierrActiva, um espaço que se propõe a ser uma zona de convívio comunitário entre diversas pessoas e organizações, além de trazer um novo elemento para a luta: a transformação interna através de práticas espirituais e a explanação de alternativas e outras possibilidades de realidade. A proposta é muito boa mas a prática é a perfeita reprodução do que se vê no espaço oficial. Organizações que estão acostumadas a um modus operandis de reuniões, articulações, midiativismo, mobilização, marcha… E não tem a menor abertura para qualquer dinâmica de criação. Acredita-se, por algum motivo não comprovado, que esse é o caminho da mudança. Que um dia uma marcha vai mudar alguma coisa, que mais uma reunião vai mudar alguma coisa, que mais um debate ou mais uma crítica ao governo vai salvar o planeta e a humanidade. Um monte de ego sentado em círculo, pessoas que tem seus salários pagos simplesmente porque a crise climática existe debatendo logos e nomes para coordenação de grupos de trabalho.

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E fala-se sem parar sobre uma nova narrativa, sobre uma nova estratégia mas na praxis se faz o mesmo de sempre porque é seguro e confortável, porque assim que se aprendeu a fazer, assim que é feito deste 1945 e repudia-se qualquer proposta de fazer diferente. São 10 reuniões por dia, aceleradas para que se possa ter mais tempo livre para estar respondendo e-mails e combinando mais reuniões. Qualquer tentativa de conexão e profundidade é considerada perda de tempo, a mentalidade da produtividade capitalista se reproduz também nos círculos dos que querem contestá-lo o tempo todo. A superficialidade, a formalidade, a produtividade glorificada.

Yoga, meditação, práticas energéticas e rituais servem para decorar. Para trazer um momento de leveza e sacar unas fotos. É um momento de respirar para que as energias possam ser recarregadas e se possa voltar a fazer o mesmo. Tudo considerado muito bonitinho. Mas em nenhum momento visto como o caminho, como a solução. Como a tal nova narrativa.

É deprimente. Essa casa é o ápice do ativismo climático no mundo hoje. Por aqui transitam as maiores organizações, os maiores ativistas tão ocupados com suas reuniões e conversas de corredor, com as articulações de seus projetos que não tem um segundo para imaginar-se em outro cenário.

Eu gostaria de sentar para uma reunião de criação em 48 horas. Pessoas se fecham em uma sala e só saem de lá com uma ideia nova. Algo que nunca tenha sido feito. Gostaria de entrar em uma reunião não verbal. Gostaria de sentar em uma geodésica com artivistas e tomar mescalina antes de olhar para as cartolinas em branco na parede. Gostaria de sair daqui com um grupo ativista com o objetivo de montar uma ecovila/hacklab e estas pessoas vão morar juntas durante um ano informando sua enorme rede de todas as ideias e propostas de um novo movimento que surgem durante este convívio. Mas nada disso faz nenhum sentido para ninguém. O que faz sentido é mais um abaixo assinado. Mais uma reunião com negociadores. Mais uma fala em uma reunião. Mais um cartão de visita.

Estamos perdidos. Acho que precisamos de uma reunião para articular essa ideia.

Ciberespiritualidade

Dedico este trabalho a todas as pessoas que acreditam que outro mundo é possível e, por isso, enfrentam a si mesmas no processo de cura interior.

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MOURÃO, Lívia Achcar. Ciberespiritualidade. Orientador: Márcio Tavares D’Amaral. Rio de Janeiro, 2014. Monografia (Graduação Em Publicidade e Propaganda) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

RESUMO

Este trabalho pretende aprofundar a crítica tecnológica trazendo um olhar para além das relações entre tecnologia com a ciência e o capital. Trataremos das tecnologias de comunicação e informação e suas relações com a espiritualidade, pretendendo ampliar o olhar sobre todas as relações tecnoreligiosas com o objetivo de trazer à tona a relação inconsciente entre espiritualidade e tecnologia que vem influenciando os caminhos evolutivos da humanidade e abrindo as portas para um cenário futurista preocupante de máquinas superinteligentes e realidade simulada.

Palavras-chaves: 1. Tecnologia. 2. Espiritualidade. 3. Evolução. 4. Magia. 5. Ciberespaço.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas as pessoas que fizeram parte do processo de criação deste trabalho direta e indiretamente. A todos aqueles que me acolheram em seus projetos, coletivos e sonhos em fases diversas da minha vida e que me inspiraram a ser mais criativa e a não ter medo de refletir sobre o improvável, me mostraram formas alternativas de viver e ensinaram a acreditar em outras possibilidades de estar na realidade.

Também agradeço meus queridos professores na Escola de Comunicação pelo entusiasmo com que lidam com o campo da comunicação e, em especial, meu orientador Márcio Tavares D’Amaral por todo seu incentivo e liberdade criativa que me permitiu.

Não posso deixar de agradecer com todo meu amor o movimento software livre que segue na luta pela liberdade na internet, acreditando sempre no compartilhar das informações e na capacidade coletiva de criação. Assim como a mídia alternativa que me ensinou a importância que tem os comunicadores na defesa e divulgação da verdade em um tempo de total descrédito das grandes corporações midiáticas interessadas em manter o homem aterrorizado e entretido dentro de sua casa.

Agradeço também ao The Pirate Bay que segue enfrentando todos os obstáculos e tentativas de controle na defesa do livre compartilhar de informações, conhecimento e cultura.

E agradeço aos meus mestres espirituais que me ensinam o que é ser humano.

DOWNLOAD:

ACHCAR, Livia. Ciberespiritualidade. 2014.

A República do Fora do Eixo

Ontem (13/05/2014) fui até a Praça da Cinelândia para o que eu acreditava ser uma pequena reunião de alguns coletivos para os quais apresentaríamos alguns resultados do Festival Internacional de Tecnoxamanismo. Entre estes coletivos, era sabido a presença dos sofistas da atualidade, a rede de produtores culturais e comunicadores, Fora do Eixo. Quando cheguei ao local, tensa, percebi que estava presenciando algo muito maior do que uma mera reunião de trocas de conhecimentos. Estava na primeira fileira do maior show de manipulação coletiva que já presenciei em toda a minha vida.

A reunião era, na verdade, uma enorme assembleia. A assembleia foi convocada pelo Fora do Eixo para debater publicamente a utilização (apropriação) do espaço público da Cinelândia que abriga a Câmara dos Vereadores e o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Espaço este que, desde as Jornadas de Junho, voltou a ser palco da resistência política na cidade. Há meses que  inúmeras manifestações culminaram em confrontos entre os Black Blocs e a Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ) nesta mesma praça. Uma grande ocupação autônoma nos modelos das acampadas na Espanha e em Wall Street eclodiu como resultado da indignação com as tarifas de transporte, o Ocupa Camara. Ali viveram e se formaram velhos e novos ativistas lutando por mais participação no parlamento e mais justiça no mundo. Essa ocupação acabou sendo violentamente destruída no dia em que a PMRJ prendeu 200 jovens que se aglomeravam nas escadarias para se proteger das bombas de gás durante uma manifestação em solidariedade os professores em greve. Desde então, toda quarta-feira, faça chuva ou faça sol, acontece a Assembleia Popular da Cinelândia, onde ativistas sentam em roda e conversam usando o método horizontal e auto-gestionado, pensado pelos nossos companheiros Indignados e adaptado à nossa realidade brasileira. Qualquer pessoa tem voz nessa assembleia, embora o poder se concentre entre os mais atuantes e articulados, como em todo espaço político. Desse espaço já nasceram projetos, debates públicos, atos e muita formulação e troca de ideias sobre o contexto político brasileiro que vivemos. Foi durante todo esse processo que a Mídia NINJA (ramificação do Fora do Eixo) cresceu, se articulou, ganhou notoriedade e, silenciosamente, vem acumulando poder e atraindo aos bandos os rejeitados de São Paulo para um novo território, onde eles ainda não estão tão queimados.

Como se essa história não tivesse a menor relevância e não fosse merecedora de respeito, o Fora do Eixo decidiu, sem consultar a ninguém, realizar uma ocupação do espaço durante a Copa do Mundo. Em entrevista do Zero Hora, Pablo Capilé explica:

Zero Hora — Você anunciou aqui no Conexões Globais que este ano o Fora do Eixo estará envolvido na fundação de uma República da Cinelândia, um território autônomo. Como vai se dar esse processo? É uma ocupação?
Pablo Capilé Na verdade a gente tem trabalhado para conectar movimentos que já desenvolvem uma vida comunitária há muito tempo. Indígenas, povos de terreiro, movimentos rurais e urbanos que têm trabalhado de forma comunitária e têm trabalhado para que essa comunidade consiga discutir com o resto da sociedade. Então a ideia é fazer uma ocupação com grupos e movimentos diversos, com transmissão ao vivo todos os dias, com shows, com constituinte própria, com conselhos… É criar um pequeno pedaço de um novo mundo possível.

ZH — Mas não como um conceito, e sim como experiência em um espaço físico?
Capilé Em um espaço físico, no coração do Rio de Janeiro, que possa estabelecer diálogos com movimentos, com artistas, com jornalistas, com ativistas, não só de todo o Brasil, mas da América Latina e do mundo, em um ano fundamental para nós, que tem copa, tem eleições. Criar uma zona autônoma permanente que consiga o tempo inteiro fazer um diálogo com a cidade, que consiga ter esses ativistas ali reunidos para acumularem juntos novos repertórios e a partir dessa convivência conjunta fazer com que essas inteligências gerem novas alternativas para esse enfrentamento e para os debates que a gente vai ter que fazer em um ano tão singular quanto 2014.

Está dada a estratégia do Fora do Eixo para se lançar no mundo durante a Copa. E para atropelar todos os outros processos em articulação naquele espaço há quase um ano. Esse novo repertório de que fala Capilé, nada mais é do que renovar o imaginário de uma república democrática. Encantar novamente os jovens cada vez mais adeptos ao anarquismo e modos autonomistas de organização com uma proposta de república levemente diferente, na verdade, muito antiga como veremos mais a frente. Como fizeram com tantos processos, vão pegar toda sua capacidade produtiva, organização interna e recursos para assumir e despolitizar um momento que deveria ser do povo e, de quebra, se projetar política e internacionalmente.

Mas voltando a ontem a noite. Após seis reuniões internas, em que, eu viria a descobrir mais tarde, tudo já estava definido, eles convocaram essa assembleia para encenar uma construção coletiva. Com aquele papo de sempre: “Temos algumas ideias mas estamos abertos para outras contribuições”. Faltaram somente os narizes de palhaço. Por volta de umas 100 pessoas passaram pelo local, a maioria de coletivos já articulados com a rede. Porém algumas pessoas da Assembleia Popular da Cinelândia, atuantes naquele espaço há quase um ano, conscientes do assalto ao ar livre que se passava ali, vieram para tentar salvar alguma coisa.

Ingenuamente, tentamos disputar o nome da ocupação. República? Queremos mesmo fundar uma outra república? Acreditamos que é esse o melhor modo de organização social para o tal novo mundo tão defendido pelo próprio Pablo Capilé? Alguns defendiam o novo e eficiente modelo do #ocupa, outros defenderam que fosse uma TAZ (zona autônoma temporária) mas, todos previamente articulados, fizeram longas defesas vazias, citando até Platão e a raiz da palavra para desviar do que não foi dito em nenhum momento. E não sou eu que vou dizer, é a matéria do Passa Palavra [2011] sobre o Fora do Eixo:

“Para o Fora do Eixo a cultura é apenas um pretexto e, atualmente, passaram a buscar meios para chegar na política. Segundo Capilé, o coletivo conseguiu nesses 5 anos “musculatura e capilaridade nacional” e no dia 18, na Marcha da Liberdade, vão mostrar a força da organização.

Em entrevista para a coletânea “Produção Cultural no Brasil”, Capilé responde o que pretendem na política formal:

“Pretendemos criar um ambiente favorável para que daqui há trinta anos o presidente da República possa sair de uma perspectiva ligada a isso que nós estamos construindo. Há trinta anos, ele saiu do sindicato, então podemos tentar criar uma plataforma onde a cultura consiga ganhar mais espaço na agenda.”

Não por acaso, o Fora do Eixo possui instituições semelhantes às do governo como o “Diário Oficial FDE”, “Congresso FDE”, “Casa Civil”, etc. Na análise de Capilé, o momento atual com a ministra Ana Buarque de Hollanda é de enfrentamento e, de uma forma geral, isso é possível graças à construção desse (novo) meio de produção. Além da raiz econômica, a projeção na burocracia os configura politicamente enquanto uma classe gestora, classe que em outros momentos históricos possuiu como projeto a renovação das elites. Mas enquanto dispersos em organizações e instituições, os gestores confundem-se com os trabalhadores na sua oposição à burguesia.”

É por isso que eles já fecharam o nome República, para definir o próximo presidente ou melhor, a próxima. Permitiram que o debate se prolongasse até a exaustão, até que, com sete inscritos, um dos NINJAs sugere a proposta de encaminhamento: “Vamos tirar uma comissão para definir esse nome depois?”. A comissão não foi tirada, defendíamos que o nome era um debate importante. Como pode uma rede que pensa comunicação relevar o nome do espaço que pretendem construir? O tempo passava, um a um os opositores se retiravam exaustos e ingênuos, pensando que aquilo não daria em nada. E os Fora do Eixo seguiam alertas, participativos do debate, concordando com todos os que falavam, balançando a cabeça freneticamente em apoio falso a qualquer nova ideia apresentada porém mentalmente descartada. Pediam silêncio aos que conversavam pelas beiradas da assembleia, demonstravam que aquilo era realmente muito importante para eles.

Zé Guajajara, indígena da Aldeia Maracanã, fez uma aparição. Ficou sentado na escadaria dando sua aula semanal de Tupi Guarani, como faz toda terça-feira na Cinelândia. Na sua frente ele abriu uma faixa negra que demarcava: “Assembleia Popular da Cinelândia”. Ao fim de sua aula, ele entrou na assembleia para dar um informe sobre o 1º Congresso Intercultural de Resistência dos Povos Indígenas e Tradicionais do Maraká’nà (COIREM) que acontecerá entre os dias 4 e 9 de Junho na Rural (UFRRJ). Tomou a palavra durante uns bons minutos e os Fora do Eixo encenaram total atenção, chegaram mais perto para fingir ouvir, interessados na presença dos povos indígenas nessa construção, já divulgada até em entrevista pelo Capilé. Zé, que não é nada bobo, sabe muito bem que esse interesse fajuto não passa de nada além de ambição por maior representatividade na tal República. Quando terminado seu informe, recolheu suas coisas e partiu.

Eu já tinha desistido daquilo tudo mas acabei ficando por lá, me imaginando entrando no meio daquela roda aos berros, rasgando minha roupa e gritando: “É TUDO MENTIRA!”. Tomei umas cervejas, conversei com uns amigos, um dos bonitinhos do Fora do Eixo (a maioria tem uma carinha de bom moço, diferente do Capilé que já mostra na cara a que vem) até me arrumou um baseado. Achei simpático mas agora até isso já incluo na estratégia de manipulação. Tive que me afastar para fumar com uma amiga, quando acendi percebi que era um baseado de skunk, quanta gentileza hein?

Quando volto para a praça, com a razão desentorpecida, vi uma cena que nunca vejo em outras assembleias. Já era quase meia noite, havia se passado 5 horas desde o início do debate mas fui descobrir que o debate de verdade estava começando naquele momento. Estavam todos em pé, bem coladinhos, ali no meio da praça, quase todos do Fora do Eixo e discípulos, definindo TUDO. Tirando comissões de “comunicação e manifesto” e data limite para entrega desse manifesto, os nomes eram todos da galera deles, Capilé ditava cada nome com intimidade, tiravam datas das próximas reuniões (uma delas hoje, outra sexta-feira, outra sábado – tudo em cima da hora sem querer saber se os horários são possíveis pra quem não faz só isso da vida como eles), anunciaram que já tem 50 mil reais para investir nesse projeto, logística, contavam postes de luz, banheiros, infraestrutura, etc., combinavam que não fariam manifestações ali, iriam até elas e depois voltariam. Eles encenavam como se as ideias estivessem surgindo ali.

Mas não estavam. Um menino, novato que mais cedo afirmou que não era do Fora do Eixo mas iria adicionar o Capilé no Facebook no dia seguinte, empolgado com a participação naquele momento mafioso, do nada, falou do que ninguém teve coragem de falar. O parlatório. “Nós vamos precisar de um parlatório não é mesmo?”. Nesse momento, eu que estava sentada ali no chão, bem juntinha a eles, perdi o controle e coloquei a cabeça entre as pernas pra não gritar. Os caras vão escrever uma constituição dessa república com direito até a um parlatório para discursos!! Alguns repararam e não tiveram outra opção a não ser cortar o menino e dizer: “Não estamos falando sobre isso aqui. Não é o momento. Depois falamos sobre isso”. Mas foi tarde demais. Eu ouvi. Pena que não gravei.

E sabemos, no parlatório quem vence são os sofistas. Era o espaço preferido deles. Os sofistas eram aqueles que convenciam a todos na Grécia antiga apenas com a retórica brilhante. Eram mestres do poder da palavra. Como são os meninos (quase não há meninas nessa máfia) do Fora do Eixo nos nossos dias de hoje. E o que será que vão defender, através dos seus belos jargões como “mimético”, “disputa”, “horizontalidade”, “somando esforços”, “utopias”, “narrativas”, “novo mundo”, “salto quântico”, entre tantos? Vão conquistar corações e mentes dos jovens que ao invés de ir se manifestar, vão passar a Copa do Mundo acampados ali acreditando que estão fazendo a revolução. Vão acalmar os ânimos daqueles que estariam se manifestando. Vão propor atos despolitizados por causas abstratas como liberdade, paz, contra a corrupção, amor, etc. e, sutilmente, nas conversas de corredor, vão fazer campanha pra Dilma.

Acabou a assembleia, saíram pra beber. Vitoriosos. Foi um belo espetáculo disfarçado de construção coletiva. Melhor que a Broadway, melhor que Hollywood. Rolou até pipoca em um momento.

O escândalo da grade aberta

Essas últimas duas semanas foram agitadas na Rádio Interferência. No início do semestre, debates sobre a abertura da grade para o remanejamento de horários e entrada de novos programadores extrapolaram todo o bom senso e culminaram no afastamento de alguns antigos programadores da rádio que não escutam o coletivo, não abrem mão de seus sonhos privados e utopias.

A grade da Rádio é aberta o ano todo. Ela fica pendurada no mural da rádio para que qualquer um possa chegar a qualquer momento e escolher um horário livre para fazer um programa sobre qualquer coisa. No início de cada semestre, os programadores antigos se unem em uma reunião de grade para remanejar seus horários de acordo com a nova rotina de estudos e trabalho. A grade segue aberta como sempre mas horários são negociados entre pessoas do coletivo de acordo com suas necessidades.

Este também é o período de entrada dos calouros e, sendo a rádio um espaço de formação política natural acarretado pela incessante troca de informações e visões, consideramos importantíssima a entrada de programadores mais jovens que trazem a renovação e que garantirão a manutenção da rádio no futuro. Sem medo de passar o bastão. Calouros são muito bem-vindos!

Agora, de bem vindos para louvados são outros quinhentos.

O debate começou porque o ano letivo da UFRJ começou uma semana antes da entrada dos calouros por causa de uma confusão burocrática federal qualquer. Ou seja, os calouros só entraram na faculdade uma semana após o retorno dos veteranos. Nesta primeira semana (sem os calouros em campus), fez-se a reunião de grade da rádio e optamos por abrir a grade para remanejamento antes da entrada dos calouros. Afinal, programadores antigos que se dedicam aos seus programas e às dinâmicas de ação do coletivo (reuniões, produção de festas, oficinas, transmissão das manifestações, manutenção da aparelhagem, etc.) tem direito a escolher seu horário antes dos novos. Ou não?

Essa atitude foi considerada por alguns como a instituição de privilégios e hierarquias na rádio. Por causa de uma visão extremamente utópica de que todos devem ser iguais perante a Deus e a rádio, defendeu-se que a grade somente poderia ser aberta quando os calouros estivessem em campus. Rasgou-se então a grade da primeira semana e aguardamos a entrada dos calouros na semana seguinte. Mesmo sem que todo mundo concordasse com essa necessidade de igualdade com jovens de 18 anos, recém saídos do colégio que chegam na faculdade com seus hormônios a flor da pele e só querem saber de zuar em sua maioria, salvo algumas exceções obviamente.

Quantidade ou qualidade?

Na segunda semana então, a Rádio participou do ECOmeço, semana de boas vindas aos calouros de comunicação em que acontecem diversos debates e oficinas. Participamos de mesas sobre comunicação, ativismo e democratização da mídia e chegamos até a passar uma parte do nosso documentário para os recém chegados comunicadores. A rádio foi anunciada e os calouros que optaram por participar dessas atividades, normalmente os mais conscientes e interessados, tomaram conhecimento da existência da rádio. À partir daí, qualquer calouro (pessoa, anjo ou animal) pode se dirigir até o prédio do DCE Mário Prata, chegar na rádio, sentar, trocar uma ideia e ter acesso ilimitado aos múltiplos horários livres da grade.

Mesmo assim, o debate interno seguiu porque algumas pessoas não ficaram satisfeitas com essa divulgação. Insistiu-se que se não divulgássemos a rádio por todos os quatro cantos da UFRJ, passando em salas, colando cartazes e arrastando calouros pelo braço até a rádio, não estaríamos sendo justos e igualitários.

Eu me pergunto desde quando precisamos divulgar a rádio para que as pessoas certas cheguem lá? A Rádio Interferência existe há 30 anos, ela se autogestiona, morre e renasce das cinzas em ciclos naturais. A rádio é um portal que atrai pessoas que vibram em frequências extremamente diferentes. Ano passado, no processo de renovação, pessoas mais diversas foram aparecendo, frequentando reuniões, conhecendo o coletivo pelos motivos mais aleatórios. É um processo natural. Ninguém precisou receber um flyer.

Parece que esquece-se que somos um coletivo anarquista, caótico e que nossa prática é ilegal. Não somos a MTV e nem a BandNews pra ficar fazendo planejamento de marketing e divulgação colorida pelos corredores da UFRJ. Não somos rádio universitária e nem comunitária, somos uma rádio livre, underground e alternativa. Uma deep rádio.

Insiste-se nessa progressiva institucionalização da rádio que começou por motivos de segurança e garantia do apoio do reitor da UFRJ às rádios Interferência e Pulga (IFCS). Depois começaram as negociações com a diretora da escola de comunicação para um apoio durante a Semana de Mídia Livre. Seguimos para reunião com o sub-prefeito e troca de telefones para possíveis emergências. Agora já estamos apresentando documentos e aguardando pacientemente o diálogo oficial com a XXX para a instalação da nossa antena. Até reunião de condomínio com DCE e APG para debater o uso da sede do DCE já está rolando. Sem contar a nota no jornal da ANEL nos desqualificando enquanto produtores de cultura daquele espaço. De onde vem essa ânsia de se institucionalizar? De participar do sistema e se render às suas burocracias ridículas? É necessidade ou vaidade? Necessidade de reconhecimento? Ou de sobrevivência?

Mas voltando ao debate da grade, acho muito óbvio que as hierarquias de conhecimento existem. Não posso mais continuar nessa hipocrisia de fingir que não existem lideranças que são definidas por grau de dedicação e colaboração com o coletivo. E, sinceramente, não vejo problema nisso. Não acho que um calouro deve ser colocado no mesmo nível de um programador que está na rádio há 5 anos e colabora com toda a construção e pensamento do movimento e do espaço. Esse cara merece escolher o horário dele primeiro! Como acontece no reino animal, em âmbito familiar e em diversas dinâmicas naturais do planeta, existe uma cadeia de importância natural entre as pessoas, anjos e animais. Isso não significa que os do início da cadeia de importância nunca subirão e nem que determinadas lideranças não deixarão de influenciar ao longo do tempo. É um processo natural de constante mudança e renovação que existe inevitavelmente.

A hierarquia que deve ser evitada é aquela que dá poder a determinadas entidades por causa de sobrenome, conta bancária, influência política, bairro onde vive, roupa que usa, grupo que frequenta e por aí vai. Mas negar esse tipo de hierarquia não tem que ser negar TODO tipo de hierarquia. A hierarquia do conhecimento existe e pode ser muito produtiva e sempre circular. Negá-la é dar abertura para lideranças irresponsáveis que influenciam sem jamais admitir que o fazem. Fingem que não sabem de sua relevância para o grupo e caso algo dê errado, não assumem suas ideias. É extremamente prejudicial à organização coletiva. Time consuming.

Que venham os calouros certos. Os que são movidos pela curiosidade e desejo de participar e resignificar a comunicação. A grade está aberta, pendurada na parede. Eles serão todos acolhidos e, aos poucos, irão se familiarizar com nossas práticas e influenciá-las também. Espera-se deles o reconhecimento do trabalho dos mais experientes, vontade de aprender e a criativa inovação da juventude. Sem crise.

Murro em ponta de faca

O mais chocante dessa história é que mesmo quando confrontado com todos os argumentos de diversas pessoas, o tal programador seguiu intransigente nas suas ideias de igualdade generalizada. Passou a desqualificar o coletivo, a entrar em conflito com determinadas pessoas criando histórias de perseguição e paranoia com o grupo de mulheres da rádio.

Programador este de comportamento machista, que chegou a acusar as mulheres da rádio de não quererem novas calouras por medo de competição e ciúmes. Como se nós não pudéssemos ter ideologias divergentes além de mero piti feminino.

Depois de incansáveis horas de debate, o programador (ariano obviamente) resolveu-se superior a coletividade e decidiu largar a rádio muito publicamente. Chegando a um ponto crítico em que pessoas praticamente o pediram para que largasse logo e nos deixasse em paz.

Como é triste a realidade de que algumas pessoas simplesmente não sabem ouvir. Recusam-se a ter a humildade de flexibilizar suas ideias em prol de um objetivo maior, de longo prazo, de luta pela democratização da comunicação e resignificação midiática. Aí não fica a dúvida, é a pura vaidade individualista.

Conclusão irrelevante

No fim das contas, a grade está aberta e os programadores estão colocando seus horários a lápis para possibilitar uma conversa com calouros que queiram horários já tomados. O que já acho uma farsa porque é óbvio que nenhum calouro em sã consciência vai se importar de pegar um horário entre os inúmeros que estão vagos e preferir entrar em conflito com um programador antigo… Mas tudo bem. A intenção vale.

Ninguém do coletivo está a fim de dar seguimento ao plano megalomaníaco de divulgação e explanação então ninguém o fará. Se alguém quiser fazer, fique a vontade mas sem ficar fazendo exigências, por favor. É livre.

Os calouros estão chegando aos poucos. E o tal programador se foi casado com sua ideia.

A banalidade do mal na Rede Globo

da Wikipedia:

“No ano de 1961, 15 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, inicia-se em Israel o julgamento de Adolf Eichmann por crimes de genocídio contra os judeus, durante a guerra. O julgamento intensamente mediatizado, é envolvido por muita polêmica e controvérsia. Quase todos os jornais do mundo enviam correspondentes para cobrirem as sessões, tornadas públicas pelo governo israelense. Uma das correspondentes presentes ao julgamento, como enviada da revista The New Yorker, é a filósofa alemã, naturalizada norte-americana, Hannah Arendt.

Além de crimes contra o povo judeu, Adolf Eichmann foi acusado de crimes contra a Humanidade e de pertencer a uma organização com fins criminosos. O réu se declarou “inocente no sentido das acusações”. No entanto, foi condenado por todas as quinze acusações que pesavam contra ele e enforcado em 1962, nas proximidades de Tel Aviv.1

Em 1963, com base em seus relatos escritos para The New Yorker, sobre o julgamento, Arendt publica um livro – Eichmann em Jerusalém. Nele, ela descreve não somente o desenrolar das sessões, mas faz uma análise do “indivíduo Eichmann”. Segundo ela, Adolf Eichmann não possuía um histórico ou traços antissemitas e não apresentava características de um caráter distorcido ou doentio. Ele agiu segundo o que acreditava ser o seu dever, cumprindo ordens superiores e movido pelo desejo de ascender em sua carreira profissional, na mais perfeita lógica burocrática. Cumpria ordens sem questioná-las, com o maior zelo e eficiência, sem refletir sobre o Bem ou o Mal que pudessem causar.

Em Eichmann em Jerusalém, Arendt retoma a questão do mal radical kantiano, politizando-o. Analisa o mal quando este atinge grupos sociais ou o próprio Estado. Segundo a filósofa, o mal não é uma categoria ontológica, não é natureza, nem metafísica. É político e histórico: é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço institucional para isso – em razão de uma escolha política. A trivialização da violência corresponde, para Arendt, ao vazio de pensamento, onde a banalidade do mal se instala.”

Em suma, Hannah Arendt justificou alguns atos vistos moralmente como malignos praticados por pessoas normais que simplesmente seguem ordens, burocracias, tem contas pra pagar ao fim do mês e jamais param para refletir sobre o contexto mundial ou sentido no que fazem.

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No contexto da Zona Sul do Rio de Janeiro, vejo práticas semelhantes frequentemente:

Terminei um relacionamento com um criativo publicitário que, para pagar seu aluguel e seus padrões de consumo emergentes como blusas Lacoste e jantares no Astor, aceitava o planejamento de vender e viciar crianças da Costa Rica em Coca-Cola pro resto da vida. Ele estava com 32 anos, aos 15 anos trabalhava vendendo legumes na feira, estudou muito, trabalhou anos praticamente de graça e finalmente conseguia um reconhecimento entre seus amigos da Zona Sul. Era extremamente vaidoso mas não levava jeito para as artes plásticas e sentia-se frustrado com isso. Seu mundinho girava em torno de si mesmo e considerava suas contas e estilo de vida o ponto final do seu trabalho.

Durante meses me encontrei semanalmente com o diretor executivo de logística de uma das maiores empresas do Brasil para tomar uma cervejinha. Ele era responsável por uma monumental obra dessas que remove comunidades inteiras e destrói terras indígenas com aval do governo federal. Toda quarta-feira ele voava para Brasília para reunir-se com o ministro da Justiça e pressionar para que demarcações indígenas fossem ignoradas e que povos fossem removidos. Ele assinava em baixo de devastação ambiental, sofrimento humano e destruição de culturas milenares diariamente. Estava passando por uma separação e tinha 3 filhos pra criar e sustentar. Sua família morava em um apartamento próprio no Leblon em obras, ele aluga em Ipanema, além da casa de Búzios pra onde viajavam sempre. Em suas casas trabalhavam 7 empregados (cozinheiros, babás, arrumadeiras, motoristas, jardineiros, etc), praticamente uma microempresa. Ele odiava o seu trabalho enfadonho, queria se dedicar a arte e escrever peças mas tinha muito medo, passou a vida lutando para chegar onde chegou, teve problemas com drogas na juventude chegando a ser internado e considerava-se um vitorioso, estudioso e gênio por ter se recuperado com tanto sucesso. Quando questionado sobre a ética, respondia que tinha filhos pra criar e pessoas a sustentar. Não via outra opção. No fim das contas pediu demissão e mudou de emprego. Hoje está muito infeliz e pagando todo seu Karma. Continua odiando índios.

Uma grande amiga é fóbica. Tem medo do mundo, trabalha de casa fazendo relatórios de Oil and Gás para um grande banco mexicano. Nos conhecemos há 11 anos e desde pequenas que ela diz que quer ser muito rica, fazer um milhão antes dos 30 anos e depois se dedicar à arte. O afastamento de todo seu talento artístico já começa a gerar neuroses e terríveis ataques fóbicos. Acredita que todo favelado é bandido e confia nos Estados Unidos para manter a ordem mundial. Pequeno gênio, já fez pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e agora se prepara para mais uma pós na COPPEAD-UFRJ. De casa define políticas de petróleo do México que encontra-se a beira de uma revolução popular por causa da privatização do mesmo (ou algo nessa linha, não tenho certeza dos detalhes da revolta). Não existe empatia alguma com esse povo que, segundo ela, representa uma ameaça ao crescimento mundial almejado pelos economistas e políticos do mundo. Está quase completando seu milhão e ano que vem quer se mudar pra Nova Iorque.

Outra amiga de menor importância é produtora do RJTV na Rede Globo. Uma das pessoas mais adoráveis que já conheci, super ligada na natureza e na sustentabilidade, maconheira máxima, adora dançar e namora há anos. Um vez a encontrei na academia e, revoltada por mais uma dessas mentiras cotidianas, fui questioná-la sobre o que acontecia. Ela me respondeu que não tinha linha editorial mentirosa, que nada disso chegava até ela e que acreditava em mudar por dentro do sistema. Que estava lá há apenas um ano e que ainda não tinha poder algum lá dentro. Depois fiquei sabendo que ela ficou muito chateada com meu questionamento, me considerou grosseira e não nos falamos desde então. Sentiu-se injustiçada! Não coloca onde trabalha no Facebook.

E acontece com outros milhões por aí. O fim do mundo está sendo definido por pessoas que não tem empatia com a humanidade enquanto raça animal que vive em um planeta de recursos finitos. Pessoas vaidosas e individualistas, vítimas de recomendações maternas voltadas para roupas, sapatos e boas maneiras a mesa, que se compreendem superiores por terem simplesmente nascido com dinheiro, que encontram sua plenitude em reconhecimento material e no poder, que precisam da segurança da cegueira e da separação dos que sofrem. São inteligentes, engraçadas, artísticas e generosas mas seguem as regras impostas pela instituição onde trabalham porque a escola, a faculdade e a família lhes prometeu que assim seriam felizes.

São a banalidade do mal bem vestida e culta.

Acompanhando essa história do Rojão em que movimentos sociais encontram-se em uma verdadeira guerra de versões com a Rede Globo fiquei imaginando como será que se sentem os que lá trabalham. Como não mandam seus superiores pro caralho e saem dali dispostos a encontrar um trabalho mais digno e humano. Mas a verdade é que seus anseios de vaidade e segurança falam mais alto e seus costumes de obediência imperam. Não existe reforma onde não existe reflexão. Não defendo a piedade com essas pessoas, acredito que são criminosas. Hoje em dia a verdade está a um clique de nós. Somos filhos da Revolução da Informação e não podemos mais admitir a vida fácil dos que tem medo e dinheiro. Só não vê quem não quer. A banalidade do mal mudou porque na época que Hannah criou esse conceito, não havia acesso à toda essa contra informação e a tantos relatos do mundo em que vivemos. Hoje a banalidade do mal é a pior das maldades porque é banal por opção. Somente a revolução real pode acabar com isso, banalidade do mal compreensível está naqueles que lutam por reformas. O cenário está dado.

HIERARQUIA: A MATRIX REALMENTE EXISTENTE

PRESENTAÇÃO | DE REPENTE VOCÊ VÊ A MATRIX

DE REPENTE UMA VENDA CAI DOS SEUS OLHOS e você vê: A Matrix. E você a vê em todo lugar: em casa, na escola, na igreja, na empresa, no comércio, em uma partida de futebol, no trânsito, nos locais de atendimento público, nas mídias sociais…

Para ver a Matrix basta parar um instante e observar o comportamento das pessoas privadas. Quer um exemplo? Observe as filas dos bancos. Quando aquele paciente correntista chega à boca do caixa, depois de esperar uma eternidade, ele vai demorar tanto ou mais do que os que estavam à sua frente. É como se dissesse: “– Agora chegou a minha vez de fazer o que eu quiser, então vou conversar bastante com o funcionário, vou me informar sobre tudo, bater aquele papo, aproveitar para realizar várias operações… Os outros que esperem (como eu esperei). Porque agora chegou a minha vez”. Esse é um comportamento típico da pessoa privada (não-comum). Mas é incrível como as pessoas que reproduzem tal comportamento não se dão conta.

Quer outro exemplo? Observe com atenção o seu mural no Facebook ou a sua timeline no Twitter. Você verá multidões de amigos ou seguidores falando só do bem, do belo, do verdadeiro. Você verá pessoas escrevendo sobre ética, valores, consciência, transformação da sociedade… Verá pessoas postando fotos de gatinhos meigos, cachorros com lacinhos, crianças fofinhas com aqueles sorrisos lindos, paisagens fantásticas… Essas pessoas acham (ou, às vezes, nem acham porque estão agindo inconscientemente) que, assim, estariam se redimindo de algum pecado (e se livrando da culpa por não ser boas o bastante). Imaginam (ou até não imaginam, mas agem como se imaginassem) que construindo uma persona (pública) identificada com o bem, o belo e o verdadeiro, estariam se aperfeiçoando (já que avaliam que não são boas o bastante), consertando algum defeito que supostamente teriam trazido: de onde? Ora, elas não sabem e o fato de não-saberem, mas atuarem (num sentido psicanalítico do termo) desse modo, explica tudo (conquanto, para elas mesmas, não explique nada de vez que essas pessoas não estão buscando explicações para o que é como deveria ser).

O mais interessante que você verá nas mídias sociais são as multidões de pessoas comemorando as sextas-feiras! E outras multidões curtindo e retuitando essas manifestações de escravos. Automaticamente. Mas do quê mesmo elas querem escapar nos finais de semana? Se você quiser saber, entre em uma organização hierárquica. Qualquer uma. E observe como as pessoas se relacionam nesses ambientes estranhos, como se não fossem elas mesmas… Sim, são autômatos.

Durante várias décadas fiquei observando esse comportamento de rebanho. Imaginando, sem saber explicar direito, que a hierarquia introduz deformações no campo social capazes de induzir as pessoas a replicar certos comportamentos.

Comecei então a fazer explorações no espaço-tempo dos fluxos, para tentar captar a estrutura e a dinâmica que estariam por trás dessa matriz que produz replicantes.

Até que, de repente, vi uma coisa espantosa. E o que vi foi um ser não-humano – um monstro – representado na figura abaixo:

 

Foi assim então que eu vi a Matrix. E quando a vi me apavorei. A imagem é aterrorizante. Lembra aquelas naves de alienígenas predadores do filme de Roland Emmerich (1996) Independence Day.

Não por acaso. Organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos. Mas alguma coisa impede que as pessoas vejam isso. Eis a razão pela qual resolvi escrever este livrinho.

São Paulo, final do inverno de 2012.

Augusto de Franco

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O Black Bloc na perspectiva da não-violência e gestão da mente

Desde Junho que o Brasil vive uma nova dinâmica na política de rua. Protestos voltaram a fazer parte do cotidiano dos jovens, especialmente na cidade do Rio de Janeiro. Após a redução do aumento da tarifa no transporte público que desencadeou a onda inicial de manifestações ao redor de todo o país, outras anseios e indignações tomaram a pauta e as energias coletivas, incentivando novas formas de organização e a permanência do estado de debate e mobilização contra a desigualdade social, pelo afastamento do governador Sérgio Cabral, pela desmilitarização da polícia militar, democratização da dos meios de comunicação, tarifa zero, educação de qualidade para todos, fim da criminalização da pobreza e de políticas pacificadoras fajutas nas favelas, entre muitas outras.

Projetos de nação e de mundo alternativos ao vigente voltaram a ser debatidos especialmente por ativistas independentes e desinstitucionalizados. O protagonismo desse novo processo político saiu dos desgastados partidos que assumiram clara dificuldade em dialogar com as dinâmicas políticas em rede e descentralizadas, ou seja, sem representantes ou hierarquias. Entre essas novas estratégias de organização, chama-se a atenção para a interação rede-rua. As grandes mobilizações passaram a ser convocadas por determinados perfis de grupos hackers como o Anonymous (e suas várias ramificações), articuladas através de hastags variadas como #protestosbr ou #protestosrj, organizadas dentro de grupos nas redes sociais. Ao mesmo tempo, seguiu-se o modelo global de ocupações dos espaços públicos enquanto representação de retomada do território comum de encontro nas praças e ruas em geral. Nasceu o Ocupa Cabral (acampamento de ativistas que reivindicavam um governo mais justo e o afastamento do atual governador na frente da sua moradia em um apartamento de luxo no Leblon), o Ocupa Câmara (acampamento de ativistas interna e externamente à Câmara dos Vereadores na Cinelândia focado no acompanhamento de processos legislativos municipais, especialmente da CPI dos Transportes) e diversas ocupações autônomas menores em diversos bairros da cidade. Estes espaços ocupados tornaram-se focos de interação presencial dos perfis em rede, desencadeando diversos eventos culturais de troca de experiências e articulações entre coletivos antes dispersos, debates e formações sobre temas variados e vivência da autogestão tão teorizada pelos acadêmicos anarquistas antepassados.

Em resumo, toda esta complexa e encantadora trama de organização política descontrolada e autônoma dos governos em gestão somada com atos quase diários em protesto e a explanação das mais diversas injustiças e opressões dos povos pelos seus representantes democraticamente eleitos, passou realmente a incomodar o sistema vigente, atingindo até aos protegidos empresários e lobbistas do status quo. Em resposta, o estado endureceu suas medidas de repressões e vigilância em cima dos ativistas que passaram a proporcionalmente radicalizar a resistência em respostas enérgicas à cada vez maior repressão violenta do estado incorporado na Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ).

Este ciclo vicioso de competição de forças entre a PMRJ e os manifestantes passou por diversos estágios de amadurecimento em ambos os lados. Grupos especializados na repressão estão sendo treinados por polícias estrangeiras enquanto concretizam-se grupos focados na resistência enérgica pelo lado dos ativistas, o mais famoso deles é o Black Bloc. Jamais se assumindo enquanto grupo organizado, o Black Bloc é uma tática de defesa dos manifestantes da repressão e tentativa de silenciar os protestos pelo estado. Embora no Brasil a tática tenha uma atuação política no sentido de soltar notas, convocar atos, fazer mídia nas redes sociais, sabe-se teoricamente impossível a associação de pessoas específicas à liderança deste organismo social. Seria o mesmo que nomear representantes dos que viram bananeiras ou dão estrelas na praia. É uma expressão física que pode ser incorporada por qualquer um que se prepare minimamente. Obviamente optar por essa estratégia de organização não é a toa, enquanto tática não existem lideranças a serem eliminadas ou encarceradas, dificultando a ação de extermínio de inimigos pelo estado.

Segundo a Wikipedia: “Black bloc é o nome dado a uma tática de ação direta, de corte anarquista, caracterizada pela ação de grupos de afinidade, mascarados e vestidos de preto que se reúnem para protestar em manifestações de rua, utilizando-se da propaganda pela ação para desafiar o establishment e as forças da ordem. Do que se pode apurar, esses grupos são estruturas efêmeras, informais, não hierárquicas e descentralizadas. Unidos, adquirem força suficiente para confrontar a polícia, bem como atacar e destruir propriedades públicas e privadas. As roupas e máscaras pretas, que dão nome ao grupo e à tática, visam garantir o anonimato dos indivíduos participantes, caracterizando-os, em conjunto, como um único e imenso bloco.

A expressão Schwarzer Block nasce no início dos anos 1980 na Alemanha. Foi de fato utilizada pela primeira vez por parte da polícia alemã durante as manifestações e passeatas antinucleares e em favor da Rote Armee Fraktion, geralmente usavam roupas e máscaras negras para que o conjunto dos manifestantes formasse uma massa compacta e bem identificável, seja para parecerem numericamente superiores, seja para atraírem a solidariedade e a ajuda de outros grupos ideologicamente afins, durante as manifestações. As máscaras e os gorros ou capacetes têm a função de proteger os membros do grupo e ao mesmo tempo impedir a identificação dos participantes, por parte da polícia.”

Embora a mídia tenha insistido em pautar os manifestantes que estão na rua desde junho como antagonicos: os pacíficos e os vândalos, essa separação nunca existiu. Desde a grande marcha do dia 20 de Junho em que um milhão de pessoas caminharam na Presidente Vargas e a polícia reprimiu violentamente os que se aproximavam da prefeitura, ficou claro a necessidade de resistir a essa tentativa de silenciar o povo pela parte do estado. A dinâmica dos atos sempre funcionou em duas etapas, um momento inicial de politização e confraternização em caminhada (que pode ser interpretado como pacifico) e um segundo momento de confronto entre os opressores e os oprimidos. Não é de hoje e não é daqui que os protestos funcionam assim. Não existem duas manifestações separadas no mesmo percurso, essa é a dinâmica normal de funcionamento ao redor de todo o mundo. E quanto maior vão ficando as tensões, quanto mais exposto ficam as contradições do sistema e as injustiças e desigualdades pelas quais passam os homens geridos por uma classe política em crise de representatividade, mais radical fica esse confronto.

Pode-se fazer uma boa análise do estado mental de um povo de uma região à partir do modo como se manifesta. Não é coincidência que em todo o Brasil as manifestações rapidamente perderam força, sucumbindo às pressões do dia a dia e ao desinteresse daqueles que não lutam sem propósito concreto como era a diminuição do aumento da tarifa (os famosos 20 centavos). Porém no Rio de Janeiro elas continuaram e uma cultura política de rua renasceu entre os jovens da cidade. O Rio, além de já estar em processo de mobilização política jovem há algum tempo (Rio+20, OcupaRio, campanha eleitoral do Marcelo Freixo), é foco da maior desigualdade social no país ao mesmo tempo em que é a cidade que mais recebe investimentos estrangeiros e agora cede dos megaeventos absurdos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Tamanha incoerência que é a cidade do Rio de Janeiro não deixa de afetar o inconsciente dos cariocas. A revolta já ultrapassa os limites do comportamento de aceitação e moderação sugeridos pela sociedade moralista e supercatólica brasileira. Os corações e as mentes estão entupidos de ódio, inveja, rancor e, a mais venenosa, rejeição. A rejeição do estado que incorpora o papel do pai na mente do cidadão. O estado-pai, que deveria prover para sua família-cidadã e que coloca cada vez mais o povo nessa posição de dependência com as políticas de distribuição de migalhas do governo do Partido dos Trabalhadores, não dá conta de disfarçar a corrupção de suas lideranças, o descaso com os que pagam impostos e a clara proteção da elite empresarial milionária da Zona Sul. É a total rejeição dos que mais necessitam de auxílio do estado que faz com que o povo torne o seu desespero em ações concretas de repúdio e violência, assim como uma criança que esperneia para chamar atenção de seu pai que apenas dá atenção ao irmão mais novo.

Sendo assim, até mesmo aqueles que não sentem o impulso incontrolável da psicologia das massas de Freud de libertar seus instintos mais reprimidos quando em grupo (máscarados e equipados) e quebrar todos os bancos e seus lucros bilionários e jogar coquetéis molotov no batalhão de choque da PMRJ que revida com centenas de bombas que equivalem, cada uma, ao salário de um professor da rede estadual e municipal de educação, consideram o Black Bloc legítimo enquanto defensor do povo. Assim como a lei que prende o pai que falta com o pagamento da pensão dos seus filhos, o Black Bloc representa a justiça nas mãos do povo abandonado e explorado.

O preocupante, no entanto, é o rumo que estes salvadores mascarados podem dar ao futuro do país. Enquanto as ações de resistência vem se radicalizando proporcionalmente às politicas de repressão do estado e à formação dos jovens militantes, milhares dos que compareciam aos protestos preferem ficar em casa e acompanhar via streaming pela internet. Não por não estarem de acordo com as ações mas por medo, nem todos tem tanta coragem ou tanto ódio a ponto de estarem dispostos a levar balas de borracha e ingerir gases tóxicos seguidamente. Assim a frequência nas manifestações diminui e a mídia consegue proliferar a ideia de que não há mais pelo o que lutar, de que o povo voltou a estar satisfeito e que agora somente os vândalos sem causa estão nas ruas. A massa acredita e vence a elite opressora que segue explorando e oprimindo livremente.

Outro resultado preocupante é a vitória da revolução liderada por estas práticas violentas. O sistema vigente é fundamentado na violência. Vivemos a era da guerra aérea, psicológica e cibernética. Vende-se violência no cinema, nos livros, nos jogos de video-game, no sexo (fetiche), na comunicação, nas relações interpessoais, nos processos de exploração dos recursos naturais, na hierarquia das instituições, na relação chefe-empregado, dominante-dominado, pai-filho, professor-aluno, etc. Será que precisamos de uma revolução que vença baseada na mesma ideologia já posta? Isso sem contar que não há como competir com o arsenal bélico ultramoderno de qualquer país do mundo hoje, então se propor a vencer um sistema com as armas do próprio sistema não seria suicídio? Podemos interpretar inclusive essa proposta de revolução enquanto vontade de autodestruição da sua vanguarda (e, se vitoriosa, autodestruição do mundo).

Uma revolução necessária é aquela baseada em outros valores, os que foram esquecidos no atual sistema mas que deram início ao mesmo, há muitos anos atrás, na Revolução Francesa: igualdade, liberdade e solidariedade. Claro que estes conceitos passaram por diversas modificações de acordo com a evolução do homem e do mundo que passou pelo capitalismo e o neoliberalismo mas basicamente são os mesmos propulsores da verdadeira mudança. Igualdade: a verdade de que todos somos um, liberdade: o empoderamento do homem livre das hierarquias e do patriarcado e a cultura da autogestão de todos os processos da vida humana assim como é na natureza, solidariedade: amor incondicional e aproprietário.

Porém vivemos um terrível paradoxo, Terry Eagleton escreve, “se, com muita frequência, conhecer o mundo significa atravessar complexas camadas de autodecepção, conhecer a si mesmo envolve ainda mais disso. Somente pessoas excepcionalmente seguras podem ter a coragem de se confrontar dessa maneira, sem racionalizar o que desenterram e nem se deixar consumir pela culpa estéril. Só alguém certo de estar recebendo amor e confiança pode alcançar essa espécie de segurança.” Sabemos que uma revolução somente é verdadeira se fundamentada no amor e não no seu oposto, a violência. Porém para fazer essa revolução precisamos nos sentir seguros para criar os estados mentais ideais para isso. E o que fazemos, hoje, ao resistir violentamente é exatamente o oposto, proliferamos a insegurança e o ódio. Mantemos as pessoas assustadas em casa assistindo à autonomeada vanguarda se manifestando em estado mental absolutamente oposto e não criamos a situação de amor e confiança necessárias para a criação dos estados mentais de real oposição ao sistema vigente.

Enquanto proliferarmos o medo, o ódio, a vingança e a inveja estaremos apenas trabalhando para a manutenção de tudo aquilo que já não suportamos. Nesta perspectiva, concluo então, consciente das possíveis críticas fundamentalistas dos violentos, que o Black Bloc está a serviço inconsciente do sistema. Proliferando os estados mentais ideais para que o povo jamais se sinta seguro para se amar e, à partir daí, fazer a revolução que tanto precisamos e sonhamos.