Archive for Revolução

Tecnoxamanismo: o novo possível

Em seu complexo texto “A origem da obra de arte”, Martin Heidegger aborda a questão de que a verdade da humanidade atual é fundamentada no conhecimento técnico-científico. A arte deixou de assumir o papel instaurador de sentido que tinha na idade média. À partir da modernidade, nas democracias que definem-se liberais, o que vem instaurando o sentido da humanidade é o eterno processo de transformação do progresso técnico-científico.

Para questionar esse sentido, Heidegger nos trás à memória a ideia de que o ser humano é eminentemente possibilidade. Estamos no aberto dos possíveis. O comportamento do homem não é programado biologicamente como o dos animais que são reféns de pulsões e instintos que os enquadram em determinados modos de vida específicos com funções e ações pré-definidas pelo seu corpo biológico. Uma cobra jamais poderá assumir o papel de um tigre na natureza, por exemplo. Já o homem não é refém de suas predisposições biológicas. Nosso estado na natureza é definido muito mais pelo que nos é legado quando nascemos. Ou seja, todos as informações que recebemos de nossos antepassados através das nossas tradições de acordo com o ambiente familiar, econômico, geográfico e cultural em que nascemos.

Todas as culturas antropológicas são modos diferentes de entender a realidade. Ao redor do planeta, podemos encontrar diversos mundos diferentes, baseados nessas diversas compreensões do que é real. Só que o autor chama atenção para o fato de que cada um desses mundos possíveis, ao se constituir enquanto uma possibilidade, descarta todas as outras possibilidades. Sendo assim, qualquer realidade em que acreditamos é restritiva de algum modo.

Com a crescente globalização e conectividade do mundo, cada vez fica mais difícil esquivar-se de uma única possibilidade, a da transformação técnico-científica enquanto sentido da vida humana, que vem sendo apresentado como verdade. A massificação e concentração do discurso midiático ao redor de um único modelo econômico embasado por um discurso de entretenimento cultural voltado para o consumo e redução do homem a espectador de poucos também vem restringindo a abertura de outros possíveis. Vivemos principalmente uma crise de ideias e narrativas.

O filósofo chama atenção para o perigo dessa verdade apresentada como única possível: a transformação técnico-científica tende a se infinitizar, ou seja, não há um ponto de chegada dessa verdade, um objetivo maior. É uma tendência eterna que vem dominando mentes e destruindo o planeta terra e seus recursos finitos sem jamais chegar a um fim concreto. É um modo de estar na realidade que tem sempre o progresso como seu próprio fim. Nos perguntamos então: quando acaba o processo? Essa circularidade do transformar é o maior problema. O estar no processo tecnológico é estar preso a esta possibilidade do transformar por transformar.

            Dentro da realidade do progresso, tende-se a endeusar a novidade. O que é mais moderno que representa o maior grau de progresso científico é o que tem mais valor. Seguimos alimentando o fluxo da transformação ao estarmos em uma eterna busca do novo enquanto cálice da felicidade e sentido do estar vivo. Só que dentro desse paradigma há uma diferença importante entre a novidade e o novo. À partir do momento em que as novidades acontecem e estamos sempre as consumindo, isso não é novo. O costume é o buscar novos objetos, seguir as novas tendências, nos adaptar às novas plataformas de comunicação… Nos vemos temporalmente imersos nas novidades, a tradição já tornou-se o consumo delas. Não há nada de novo nisso.

O novo seria parar de fazer essas coisas e fazer outras coisas. Parar de transformar as coisas. Viver de outra maneira, fazer outra coisa. Essas novidades não tem nada de novo, já tornaram-se tradição. O novo seria radicalmente diferente desse eterno consumo de novidades técnicas. O novo seria andar de ponta cabeça todo dia, criar novas formas de amar, valorizar o antigo, guiar-se pela luz da lua… Criar novas formas de se estar no mundo que sejam diferentes daquelas incentivadas pela forma atual do progresso técnico científico.

Como, para Heidegger, a arte deixou de ser o que instaura a verdade para essa realidade em vivemos, então talvez a arte possa ser o espaço que abra o pensar para a nova possibilidade que não seja o acumular se esta se propor a não valorizar tanto as novidades. E isso vem sendo um desafio cada vez maior enquanto o estar da arte atualmente tem tudo a ver com a técnica e com a capacidade técnica do artista. A arte hoje está sempre se renovando junto com as novas possibilidades de produção e quanto mais tecnológica ou mais complexo o processo de produção científico da obra, mais valor ela tem perante o mercado e os críticos. Chegamos a tal ponto em que ideias e conceitos são secundários em relação à maestria tecnológica, efeitos especiais, iluminação, softwares de edição de som e vídeo, impressoras 3D, drones e por aí vai infinitamente. Vamos à exposições de arte mais para ver que tecnologias tem sido apropriadas pelos artistas e quais usos para elas além do convencional estão sendo propostos. Mas as ideias, críticas, novas linguagens e olhares para o mundo estão cada vez mais em falta.

É dentro deste contexto que nasce o Tecnoxamanismo, um novo conceito e possível movimento pensado especialmente por artistas, tecnólogos e místicos articulados perante a catástrofe emanente prevista para o planeta nas próximas décadas. Uma quebra radical com o olhar técnico científico que proporciona um novo olhar para as novas e velhas tecnologias que vem dominando as mentes humanas cada vez mais distantes da sua potência em troca do permanente estado de simulação proporcionado pelo ciberespaço.

Para começar é um movimento ambientalista de valorização dos povos indígenas e de suas tradições e tecnologias milenares em conexão com a grande mãe natureza. Parte-se do xamanismo, a prática espiritual dos pajés baseada na exploração da mente em profundidade, expansão da percepção em êxtase induzida pela ingestão de substâncias alteradoras da consciência (Enteógenos) que possibilita o trânsito mental destes homens a outras dimensões (exploradas também pela física quântica) e outras formas de vidas como plantas e animais – o xamã pode ver através dos olhos de uma águia ou correr dentro de uma onça. São eles que tem visões do futuro, profetizam acontecimentos que os vem em imagens ou sonhos. Podem comunicar-se telepaticamente, manuseiam energias de seus e outros corpos, transmutam padrões energéticos através de rituais, incorporam, canalizam e comunicam-se com seus antepassados espiritualmente. São exploradores de um potencial inerente do “hardware” que é o corpo humano inseridos em uma possibilidade de estar na realidade radicalmente diferente do transformar técnico científico em que a maioria da humanidade se vê inserida por falta de opção melhor.

O tecnoxamanismo começa por entender o xamanismo enquanto um potencial inerente de todo ser humano que se propõe a inserir-se em uma nova possibilidade de estar no planeta. Ao invés de máquinas, a mente. Não são somente os xamãs que tem a capacidade de acessar todos os conhecimentos da terra com o fechar de olhos, inúmeras linhas místicas indianas e mundo a fora já falam sobre a possibilidade de acessar uma rede energética espiritual que poderia substituir o Google com o árduo treinar de um estado de alerta mental diferente daquele que estamos acostumados.

Entendendo que o xamanismo é uma linguagem mística falada dentre os povos indígenas semelhante a outras linguagens (correntes) de misticismo, ocultismo, tribalismo e conexão com a natureza faladas ao redor do mundo, acredita-se possível valorizar estes conhecimentos há muito tempo desqualificados pelo paradigma técnico científico devida a sistemática falência do método experimental lógico racional em compreendê-los para superá-lo. Ou seja, explorando esse conhecimento ancestral irracional fundamentado na capacidade intuitiva e expansiva da mente humana poderemos através do nosso próprio corpo superar a relação com a máquina e o progresso que está a nos dominar e possivelmente culminar na extinção da raça humana.

À partir daí olhamos para as tecnologias, métodos de organização social e práticas espirituais ancestrais que datam do período neolítico anteriores até mesmo a linguagem escrita enquanto tecnologia de ponta para pensar uma nova possibilidade de estar na realidade. Analisando a relação milenar humana de parceria entre os gêneros, adoração a uma deusa mulher criadora da vida, organização política voltada aos interesses da comunidade e foco na beleza ao invés da sociedade patriarcal, hierárquica, fundamentada por uma teologia masculina adoradora do Pai e do Filho homens, amante da guerra e da morte, de organização política voltada para a coerção através da violência e do medo e foco nos obstáculos e perigo da vida. A capacidade humana criadora da mente versus o estado tecnológico das máquinas dominantes do pensamento.

É um início de um olhar prático e racional para o que anteriormente era visto como loucura. O lento despertar proporcionado pelo acesso à informação ilimitada, produção de novos olhares e interação direta entre pessoas em rede pela internet vem gerando sensações de repúdio a realidade em que estamos inseridos. A devastação ambiental, deturpação de valores e talentos em nome do consumo, perda das singularidades, solidão, medicamentação da vida, desigualdade social, fobia das diferenças, infantilização da inteligência pela grande mídia, acúmulo de riquezas nas mãos de poucos, genocídio dos pobres, falta de educação e saúde, gastos em guerras… Percebe-se que loucura é o que vivemos hoje. E desconfia-se que o que é considerado loucura pelos loucos possa ser, na verdade, sanidade e solução. Somente o que eles não entendem pode vencê-los.

Ao retomar práticas xamânicas, místicas e esotéricas e afirmá-las enquanto técnica quebram-se algumas correntes mentais presas no paradigma de que tudo que existe é somente aquilo que é provado pelo método científico. E somente com o despertar através do atavismo (crença de que carregamos genes ancestrais adormecidos que podem ser acessados em determinadas condições) das potencialidades escondidas dentro do próprio corpo humano valorizando também as experiências artísticas corporais das performances que propõem-se a repensar o corpo e valorizá-lo através de usos radicais, sexuais e chocantes que trazem à memória a dádiva dos sentidos aguçados em estados animais, podemos começar a olhar para as tecnologias que permeiam nossa vida de modo a coloca-las em seu devido lugar, o de auxiliar a vida do homem e não ditá-la.

Porque o que vemos acontecer é uma desconexão cada vez maior entre a mente, o corpo e a natureza em grande parte gerado pela dependência tecnológica do cotidiano. O abaixar a cabeça para a técnica criada em centros de pesquisa distantes e ministrada por engenheiros e cientistas em todas as áreas da vida vem gerando uma perda de autonomia e potência do que é ser humano. Aceitamos comer comidas artificiais e envenenadas porque acreditamos que só é possível alimentar a todos com o agronegócio e a indústria alimentícia. Abrimos mão do nosso poder de criação infinito porque nos julgamos inferiores às máquinas. E isso serve para tudo. Vamos ficando escravos do conforto proporcionado pelo Google, pelo GPS, pela lâmpada, pelo relógio despertador, pelo ar-condicionado, pelo micro ondas, pela televisão e todas as novidades deles derivadas. Vamos ficando flácidos, gordos, míopes, surdos, frios, distantes, solitários sem perceber que vivemos em um estado de possibilidade dentre tantos outros possíveis e invisíveis ao nosso redor. E caímos em um ciclo vicioso: quanto mais dependentes, menos humanos, quanto menos humanos, mais dependentes. E aí é claro que iremos permitir o estupro da planeta terra, iremos estuprá-la até que ela nos mate a todos já que precisamos das nossas extensões tecnológicas para viver dentro desse estado mental de dependência em que nos encontramos.

A ideia não é negar a tecnologia. Já que acreditamos em um projeto divino para tudo que acontece na história terrestre, consideramos que o homem é nada além de partículas do universo combinadas de modo a ter consciência de si. Por tanto, todo esse progresso e estudo técnico científico a que chegamos até agora não foi em vão. Tudo que passamos foi produto de uma curiosidade do universo sobre si mesmo, uma tentativa de entender e analisar-se. Só que chegamos a um ponto de entendimento em que devemos estar mais conscientes das escolhas que fazemos em relação aos rumos dessa curiosidade universal daqui pra frente. Seguiremos investindo milhões em tecnologias de destruição e domínio de nós mesmos ou em psicodelia, expansão cognitiva e produção de liberdade e autonomia? Ao seguirmos no caminho do acúmulo de conhecimento em centros de pesquisa dirigidos por alguns homens arrogantes que julgam-se Deus, estamos permitindo que biotecnologias criem vida artificiais, misturem espécies de batatas com galinhas em prol do consumo rápido e produção massiva, inteligência artificial que permitirá que em 2029 estejamos reféns da boa vontade de algumas máquinas superiores a nós mesmos, transhumanismos utópicos que pregam que a solução para a morte está em transplantar cérebros humanos para próteses maquínicas ignorando toda a complexidade energética corporal e tudo isso sendo alimentado pela energia elétrica dos rios devastados e em processo de desertificação dos seus arredores. A ideia é conscientizar sobre a escolha da tecnologia daqui pra frente.

Ao valorizarmos a mística e o corpo enquanto alta tecnologia e percebermos o estado de potencia que é ser vivo e humano podemos então nos apropriar da técnica até agora produzida e pensa-la de modo mais saudável, adaptá-la para novos fins criativos e libertadores de uma mente adormecida e refém de alguns softwares produzidos a portas fechadas em reuniões na Califórnia que vem ditando dinâmicas de pensamento dispersas e rasas, lógicas e frias. Ao libertarmos a mente propondo-nos a arriscar novos estados mentais e flertando com o que é considerado loucura pelos loucos estamos nos colocando no papel de cobaia de um novo possível de verdade. Estamos quebrando com o padrão regente do único possível e fazendo algo radicalmente diferente disfarçado de arte crítica e tecnológica. Pensando novos usos pra máquina e pro homem em parceria para a criação de uma nova possibilidade de estar na realidade e quem sabe, futuramente, alterá-la para um estado de vida mais saudável, em maior conexão com nós mesmos e com a natureza.

Tecnoxamãs do mundo, uni-vos!

Que mundo chato!

Vejo coisas. Sombrias e futuras que me causam reflexões solitárias. Será que estou louca? Porque ninguém mais vê o que eu vejo? Ou será que muitos por aí veem também mas eu só não os conheci em Ipanema? Vejo o fim do mundo em construção. Vejo a técnica substituindo a potência humana. Vejo a técnica substituindo a vida e se alimentando de toda independência que nos resta. Vejo a ciência e a mídia nos dizendo o que é verdade e o que é mentira e nos estuprando com seus artigos e criações de um mundo que não nos serve mais. Que saco esse mundo onde contos épicos não tem espaço para acontecer. Será que Aquiles sabia protagonizar uma epopéia? Meu auto corretor sequer conhece a palavra epopéia. A fina linha pontilhada vermelha em baixo da palavra escrita, por alguns milésimos de segundo, me faz duvidar se os feitos heroicos de outras épocas de fato existiram. Será que a máquina sabe me dizer melhor do que eu mesma o que é correto e o que é lapso de digitação?

Penso nos Mayas e nas pirâmides. Pedra sobre pedra construída sem mãos, apenas energia e pensamento. Em um outro mundo, tudo era energia. Todos éramos monges e xamãs e já nascíamos em uma cultura projetada para o controle da mente e aumento da produtividade energética inerente do corpo humano. Hoje a ciência nos comprova que é impossível enquanto os espíritos Mayas nos olham de cima às gargalhadas, riem da nossa evolução ao contrário. Queremos tanto o poder de realizar tudo sem ter o mínimo trabalho interno. Tudo pra fora. Enquanto internamente buscamos por uma normalidade ilusória que gera sofrimento e anti depressivos. Que mundo CHATO.

Estamos mergulhados naquela escuridão que vem antes da tempestade. Em breve, a grande aventura vai começar. A maior história de todos os tempos começa com a maior burrice de todos os tempos. Uma globalização da estupidez que pressiona a mãe terra aos seus limites finais, desrespeitando tudo que ela nos dá como se fosse sua mera obrigação. O estupro diário do maior animal que é esse planeta não vai acabar com a morte da única fonte de vida. Belisque um cavalo 500 vezes por dia, todos os dias, durante um século, incentivando através de postulemas, teorados, artigulações e muita televiolência que todos façam o mesmo com seus cavalos, todos os dias, durante um século. Até quando os cavalos seguirão nos servindo?

Mas a cegueira segue. Repetimos as mesmas conferências, as mesmas reuniões de planejamento, lutamos pelas mesmas políticas públicas, votamos nos mesmos governantes, criamos as mesmas novas organizações, vamos aos mesmos protestos, sentamos nas mesmas assembleias… “Mas não são as mesmas, Penny! Esta é a conferência clima 2014, aquela era a conferência ambiente vivo 2012. Esta é a assembleia da Bahia de Guanabara, aquela era a assembleia do Monte Fuji. Esta é a reunião de planejamento para as bacias hidrográficas do Itaimbibi, aquela era a reunião de planejamento para jovens educadores floricultores. Este é o Lula, aquela era a Dilma. Este é o Ban Ki Moon, aquele era Vargas. Esta é a Marcha pela liberdade de Hideki, aquela era a marcha Fora Cabral. Naquela época MST e CUT eram aliados, hoje eles são oposição…” Será possível tamanha falta de capacidade de análise sistêmica e abstração. O dia a dia da burocracia, da falta de símbolos, da falta de atenção ao redor está acabando com a nossa capacidade de perceber que estamos nos ocupando externamente de atividades de salvação ilusórias e idênticas! Estamos presos nos padrões da destruição. Einstein já dizia, insanidade é fazer a mesma coisa diversas vezes e esperar resultados diferentes.

A política está morta. O dia seguinte da revolução é exatamente igual ao dia anterior. É preciso se curar internamente, acreditar na potência energética do corpo humano, nas redes invisíveis da mente, articular as ecovilas, a permacultura, as plantas de poder, a nova espiritualidade, o xamanismo, os festivais de trance, educação livre, relacionamentos libertos, sair das cidades, voltar por campo, economia da abundância, fluxos, trocas… Para aí pensar-se o que criar com toda tecnologia que temos de modo que seja libertador e não dominador. E viver intensamente criando novas maneiras de estar na realidade. Desinstalando os programas mentais anteriores. Mudar o mundo é resultado de viver um novo mundo agora.

Viveremos 200 anos porque desde o dia em que nascemos todos nos dirão que o ser humano vive 200 anos. Não haverão estatísticas porque acreditaremos em possibilidades antes de médias. Teremos novos símbolos, novos rituais, novos mitos. Homens e mulheres serão guerreiros da mente, viverão em parceria e a ideia de inferioridade será apagada no nosso sistema operacional. Milhares de mundos florescerão de acordo com as comunidades que os criarem. Viajar o mundo será como viajar dimensões. Ninguém tentará impor uma única ideia de mundo por motivos comerciais, para facilitar transações. Produtos exóticos de cada continente seguirão sendo exóticos e serão valorizados por isso. Não haverá miséria porque cada mundo terá seu próprio modo de existir e o que é miséria para um mundo pode ser estado de provação positiva para outro.

Toda quarta-feira sentaremos ao redor da fogueira e a comunidade conversará sobre o que precisa. Entraremos em consenso sobre tudo. Quando alguém fizer algo reprovável, não haverá leis. A comunidade se encontrará para julgar. Viveremos em estados tribais ultra conectados através da mente e da tecnologia. Tudo será menos limpo e por isso seremos mais resistentes a bactérias e doenças naturalmente. Conforto será superficial, algo que acontece de vez em quando, em épocas especiais. Trabalharemos muito mais internamente do que externamente. Não teremos medo de meditar. Toda sexta-feira será dia de rezar para os novos deuses (antigos Deuses travestidos) e rezaremos dançando trance a noite inteira. Durante o festival, refletiremos, amaremos e nos curaremos sempre de alguma dor ancestral que carregamos no sangue. Seremos encarregados da redenção de tanta dor passada que segue conosco nos campos morfogenéticos das constelações familiares. Faremos parte de uma pequena parcela da humanidade que sobreviveu e teremos que repensar toda a existência no planeta.

Eu quero aventuras, exploração de mares mentais com nada além das estrelas como guia. Quero libertar minhas emoções livremente e não ter vergonha de sentir. Quero comer, beber e levitar ao mesmo tempo. Quero conversar telepaticamente com todos na rua. Quero acessar uma rede invisível de conhecimento e canalizar tudo que preciso saber sem ter que depender de Google ou qualquer programa elétrico. Quero acreditar em outras possibilidades de existência. E quero que a ciência se foda.

Mas antes de tudo isso haverá guerras, desastres, robôs assassinos… Até esse pessoal todo que está no poder morrer de velhice, seguirão tentando impor o que conhecem. Presos em estados mentais cristalizados, impossíveis de mudar. Eles não conseguem se ver. Somos governados por crianças mimadas em corpos flácidos onde não fluem ideias e sim reclamação. Falar sobre energia com esses caras é realmente piada.

O fim do mundo está chegando. Será que sou fanática por me preocupar com isso? Há sempre os que resistem, que riem, que zombam dessas ideias insanas enquanto estão confortavelmente no seu ar-condicionado olhando como um zumbi para a tela do computador. Estão ali entregues ao que a máquina lhe diz, ao que o professor lhe diz, ao que as estatísticas lhe dizem, ao que as placas na rua lhe dizem, ao que as leis lhe dizem… Completamente alienados do que seu coração lhe diz. Incapazes de criar. De alucinar. De viver intensamente. Ai que vida chata. Que dia a dia monótono. Será que é isso o que há pra nós? Será que é essa a epopéia contemporânea?

A República do Fora do Eixo

Ontem (13/05/2014) fui até a Praça da Cinelândia para o que eu acreditava ser uma pequena reunião de alguns coletivos para os quais apresentaríamos alguns resultados do Festival Internacional de Tecnoxamanismo. Entre estes coletivos, era sabido a presença dos sofistas da atualidade, a rede de produtores culturais e comunicadores, Fora do Eixo. Quando cheguei ao local, tensa, percebi que estava presenciando algo muito maior do que uma mera reunião de trocas de conhecimentos. Estava na primeira fileira do maior show de manipulação coletiva que já presenciei em toda a minha vida.

A reunião era, na verdade, uma enorme assembleia. A assembleia foi convocada pelo Fora do Eixo para debater publicamente a utilização (apropriação) do espaço público da Cinelândia que abriga a Câmara dos Vereadores e o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Espaço este que, desde as Jornadas de Junho, voltou a ser palco da resistência política na cidade. Há meses que  inúmeras manifestações culminaram em confrontos entre os Black Blocs e a Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ) nesta mesma praça. Uma grande ocupação autônoma nos modelos das acampadas na Espanha e em Wall Street eclodiu como resultado da indignação com as tarifas de transporte, o Ocupa Camara. Ali viveram e se formaram velhos e novos ativistas lutando por mais participação no parlamento e mais justiça no mundo. Essa ocupação acabou sendo violentamente destruída no dia em que a PMRJ prendeu 200 jovens que se aglomeravam nas escadarias para se proteger das bombas de gás durante uma manifestação em solidariedade os professores em greve. Desde então, toda quarta-feira, faça chuva ou faça sol, acontece a Assembleia Popular da Cinelândia, onde ativistas sentam em roda e conversam usando o método horizontal e auto-gestionado, pensado pelos nossos companheiros Indignados e adaptado à nossa realidade brasileira. Qualquer pessoa tem voz nessa assembleia, embora o poder se concentre entre os mais atuantes e articulados, como em todo espaço político. Desse espaço já nasceram projetos, debates públicos, atos e muita formulação e troca de ideias sobre o contexto político brasileiro que vivemos. Foi durante todo esse processo que a Mídia NINJA (ramificação do Fora do Eixo) cresceu, se articulou, ganhou notoriedade e, silenciosamente, vem acumulando poder e atraindo aos bandos os rejeitados de São Paulo para um novo território, onde eles ainda não estão tão queimados.

Como se essa história não tivesse a menor relevância e não fosse merecedora de respeito, o Fora do Eixo decidiu, sem consultar a ninguém, realizar uma ocupação do espaço durante a Copa do Mundo. Em entrevista do Zero Hora, Pablo Capilé explica:

Zero Hora — Você anunciou aqui no Conexões Globais que este ano o Fora do Eixo estará envolvido na fundação de uma República da Cinelândia, um território autônomo. Como vai se dar esse processo? É uma ocupação?
Pablo Capilé Na verdade a gente tem trabalhado para conectar movimentos que já desenvolvem uma vida comunitária há muito tempo. Indígenas, povos de terreiro, movimentos rurais e urbanos que têm trabalhado de forma comunitária e têm trabalhado para que essa comunidade consiga discutir com o resto da sociedade. Então a ideia é fazer uma ocupação com grupos e movimentos diversos, com transmissão ao vivo todos os dias, com shows, com constituinte própria, com conselhos… É criar um pequeno pedaço de um novo mundo possível.

ZH — Mas não como um conceito, e sim como experiência em um espaço físico?
Capilé Em um espaço físico, no coração do Rio de Janeiro, que possa estabelecer diálogos com movimentos, com artistas, com jornalistas, com ativistas, não só de todo o Brasil, mas da América Latina e do mundo, em um ano fundamental para nós, que tem copa, tem eleições. Criar uma zona autônoma permanente que consiga o tempo inteiro fazer um diálogo com a cidade, que consiga ter esses ativistas ali reunidos para acumularem juntos novos repertórios e a partir dessa convivência conjunta fazer com que essas inteligências gerem novas alternativas para esse enfrentamento e para os debates que a gente vai ter que fazer em um ano tão singular quanto 2014.

Está dada a estratégia do Fora do Eixo para se lançar no mundo durante a Copa. E para atropelar todos os outros processos em articulação naquele espaço há quase um ano. Esse novo repertório de que fala Capilé, nada mais é do que renovar o imaginário de uma república democrática. Encantar novamente os jovens cada vez mais adeptos ao anarquismo e modos autonomistas de organização com uma proposta de república levemente diferente, na verdade, muito antiga como veremos mais a frente. Como fizeram com tantos processos, vão pegar toda sua capacidade produtiva, organização interna e recursos para assumir e despolitizar um momento que deveria ser do povo e, de quebra, se projetar política e internacionalmente.

Mas voltando a ontem a noite. Após seis reuniões internas, em que, eu viria a descobrir mais tarde, tudo já estava definido, eles convocaram essa assembleia para encenar uma construção coletiva. Com aquele papo de sempre: “Temos algumas ideias mas estamos abertos para outras contribuições”. Faltaram somente os narizes de palhaço. Por volta de umas 100 pessoas passaram pelo local, a maioria de coletivos já articulados com a rede. Porém algumas pessoas da Assembleia Popular da Cinelândia, atuantes naquele espaço há quase um ano, conscientes do assalto ao ar livre que se passava ali, vieram para tentar salvar alguma coisa.

Ingenuamente, tentamos disputar o nome da ocupação. República? Queremos mesmo fundar uma outra república? Acreditamos que é esse o melhor modo de organização social para o tal novo mundo tão defendido pelo próprio Pablo Capilé? Alguns defendiam o novo e eficiente modelo do #ocupa, outros defenderam que fosse uma TAZ (zona autônoma temporária) mas, todos previamente articulados, fizeram longas defesas vazias, citando até Platão e a raiz da palavra para desviar do que não foi dito em nenhum momento. E não sou eu que vou dizer, é a matéria do Passa Palavra [2011] sobre o Fora do Eixo:

“Para o Fora do Eixo a cultura é apenas um pretexto e, atualmente, passaram a buscar meios para chegar na política. Segundo Capilé, o coletivo conseguiu nesses 5 anos “musculatura e capilaridade nacional” e no dia 18, na Marcha da Liberdade, vão mostrar a força da organização.

Em entrevista para a coletânea “Produção Cultural no Brasil”, Capilé responde o que pretendem na política formal:

“Pretendemos criar um ambiente favorável para que daqui há trinta anos o presidente da República possa sair de uma perspectiva ligada a isso que nós estamos construindo. Há trinta anos, ele saiu do sindicato, então podemos tentar criar uma plataforma onde a cultura consiga ganhar mais espaço na agenda.”

Não por acaso, o Fora do Eixo possui instituições semelhantes às do governo como o “Diário Oficial FDE”, “Congresso FDE”, “Casa Civil”, etc. Na análise de Capilé, o momento atual com a ministra Ana Buarque de Hollanda é de enfrentamento e, de uma forma geral, isso é possível graças à construção desse (novo) meio de produção. Além da raiz econômica, a projeção na burocracia os configura politicamente enquanto uma classe gestora, classe que em outros momentos históricos possuiu como projeto a renovação das elites. Mas enquanto dispersos em organizações e instituições, os gestores confundem-se com os trabalhadores na sua oposição à burguesia.”

É por isso que eles já fecharam o nome República, para definir o próximo presidente ou melhor, a próxima. Permitiram que o debate se prolongasse até a exaustão, até que, com sete inscritos, um dos NINJAs sugere a proposta de encaminhamento: “Vamos tirar uma comissão para definir esse nome depois?”. A comissão não foi tirada, defendíamos que o nome era um debate importante. Como pode uma rede que pensa comunicação relevar o nome do espaço que pretendem construir? O tempo passava, um a um os opositores se retiravam exaustos e ingênuos, pensando que aquilo não daria em nada. E os Fora do Eixo seguiam alertas, participativos do debate, concordando com todos os que falavam, balançando a cabeça freneticamente em apoio falso a qualquer nova ideia apresentada porém mentalmente descartada. Pediam silêncio aos que conversavam pelas beiradas da assembleia, demonstravam que aquilo era realmente muito importante para eles.

Zé Guajajara, indígena da Aldeia Maracanã, fez uma aparição. Ficou sentado na escadaria dando sua aula semanal de Tupi Guarani, como faz toda terça-feira na Cinelândia. Na sua frente ele abriu uma faixa negra que demarcava: “Assembleia Popular da Cinelândia”. Ao fim de sua aula, ele entrou na assembleia para dar um informe sobre o 1º Congresso Intercultural de Resistência dos Povos Indígenas e Tradicionais do Maraká’nà (COIREM) que acontecerá entre os dias 4 e 9 de Junho na Rural (UFRRJ). Tomou a palavra durante uns bons minutos e os Fora do Eixo encenaram total atenção, chegaram mais perto para fingir ouvir, interessados na presença dos povos indígenas nessa construção, já divulgada até em entrevista pelo Capilé. Zé, que não é nada bobo, sabe muito bem que esse interesse fajuto não passa de nada além de ambição por maior representatividade na tal República. Quando terminado seu informe, recolheu suas coisas e partiu.

Eu já tinha desistido daquilo tudo mas acabei ficando por lá, me imaginando entrando no meio daquela roda aos berros, rasgando minha roupa e gritando: “É TUDO MENTIRA!”. Tomei umas cervejas, conversei com uns amigos, um dos bonitinhos do Fora do Eixo (a maioria tem uma carinha de bom moço, diferente do Capilé que já mostra na cara a que vem) até me arrumou um baseado. Achei simpático mas agora até isso já incluo na estratégia de manipulação. Tive que me afastar para fumar com uma amiga, quando acendi percebi que era um baseado de skunk, quanta gentileza hein?

Quando volto para a praça, com a razão desentorpecida, vi uma cena que nunca vejo em outras assembleias. Já era quase meia noite, havia se passado 5 horas desde o início do debate mas fui descobrir que o debate de verdade estava começando naquele momento. Estavam todos em pé, bem coladinhos, ali no meio da praça, quase todos do Fora do Eixo e discípulos, definindo TUDO. Tirando comissões de “comunicação e manifesto” e data limite para entrega desse manifesto, os nomes eram todos da galera deles, Capilé ditava cada nome com intimidade, tiravam datas das próximas reuniões (uma delas hoje, outra sexta-feira, outra sábado – tudo em cima da hora sem querer saber se os horários são possíveis pra quem não faz só isso da vida como eles), anunciaram que já tem 50 mil reais para investir nesse projeto, logística, contavam postes de luz, banheiros, infraestrutura, etc., combinavam que não fariam manifestações ali, iriam até elas e depois voltariam. Eles encenavam como se as ideias estivessem surgindo ali.

Mas não estavam. Um menino, novato que mais cedo afirmou que não era do Fora do Eixo mas iria adicionar o Capilé no Facebook no dia seguinte, empolgado com a participação naquele momento mafioso, do nada, falou do que ninguém teve coragem de falar. O parlatório. “Nós vamos precisar de um parlatório não é mesmo?”. Nesse momento, eu que estava sentada ali no chão, bem juntinha a eles, perdi o controle e coloquei a cabeça entre as pernas pra não gritar. Os caras vão escrever uma constituição dessa república com direito até a um parlatório para discursos!! Alguns repararam e não tiveram outra opção a não ser cortar o menino e dizer: “Não estamos falando sobre isso aqui. Não é o momento. Depois falamos sobre isso”. Mas foi tarde demais. Eu ouvi. Pena que não gravei.

E sabemos, no parlatório quem vence são os sofistas. Era o espaço preferido deles. Os sofistas eram aqueles que convenciam a todos na Grécia antiga apenas com a retórica brilhante. Eram mestres do poder da palavra. Como são os meninos (quase não há meninas nessa máfia) do Fora do Eixo nos nossos dias de hoje. E o que será que vão defender, através dos seus belos jargões como “mimético”, “disputa”, “horizontalidade”, “somando esforços”, “utopias”, “narrativas”, “novo mundo”, “salto quântico”, entre tantos? Vão conquistar corações e mentes dos jovens que ao invés de ir se manifestar, vão passar a Copa do Mundo acampados ali acreditando que estão fazendo a revolução. Vão acalmar os ânimos daqueles que estariam se manifestando. Vão propor atos despolitizados por causas abstratas como liberdade, paz, contra a corrupção, amor, etc. e, sutilmente, nas conversas de corredor, vão fazer campanha pra Dilma.

Acabou a assembleia, saíram pra beber. Vitoriosos. Foi um belo espetáculo disfarçado de construção coletiva. Melhor que a Broadway, melhor que Hollywood. Rolou até pipoca em um momento.

Os posts da Penny estão licenciados sobre a lata.

Liberdade Ainda que à Tardinha

Versão 0.3.1

1 – Esta é uma licença de uso de obras, processos e idéias.

2 -Tudo o que for licenciado pela Lata, poderá ser:

– usado, estudado, modificado, amassado, distribuído e o que mais você quiser fazer. Você é livre para usar do jeito que você quiser. Contanto que faça o mesmo com o resultado desse processo e:

2.1- em relação ao uso comercial, se este uso for incentivar uma economia local e/ou se você estiver na pindaíba e/ou para fins de balbúrdia, ele é permitido. Agora, caso você queira ganhar e acumular muito dinheiro com o objeto aqui licenciado, caso você pertença a algum meio de comunicação corporativo ou qualquer empresa em que os donos e executivos ganhem muito mais dinheiro que os faxineiros, você não poderá fazer uso comercial.poker gratuit Se o fizer, conte com a feitiçaria eterna sobre sua vida, a da sua família e de toda a sua hereditariedade. Que você apodreça no inferno além de levar um processo nas costas!

2.2- O mesmo se aplica a instituições estrangeiras de pesquisa biogenética e farmacêutica, ONGs que fazem projetos a esmo só para arrecadar mais recursos e aonde o diretor ganha muito mais que o faxineiro, bancos, empresas de especulação financeiras, fabricantes de armas, empresas de ônibus, madeireiras, toda a espécie de agronegócio, entre outras.

Cláusula do Genocídio- O uso mesmo que comercial nos Estados Unidos, Europa Ocidental e outros países desenvolvidos só é incentivado para todas as minorias, imigrantes de paises subdesenvolvidos, e moradores de ocupções, assentamentos e desenvolvedores de software livre. Se você não se encaixa nesses termos, mas simpatiza com essa distinção, fique a vontade.

3- todo o uso e/ou modificação e/ou resultado decorrido da obra/processo/idéia/trecho licenciado sob a LATA deverá ser compartilhado da mesma maneira, sem exceções, com a mesma licença e sob os mesmos termos

Para usar a Lata em sua obra coloque (ou não)

“Sejam mais criativos. Façam seu próprio direito. Obra licenciada sobre a licença a Lata. Para ver a licença completa acesse:http://crieitivecomo.org/wikka.php?wakka=licencadalata∞”

Manifesto Surrealista

André Bretton, 1924

Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ) . Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir.

Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.

Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões para viver,  incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.

Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.

Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?

Fica a loucura.”a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para  suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.

Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação.

O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento.

Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora hoje em dia desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se incessantemente nos jornais , e põe em xeque a ciência, a arte, ao aplicar-se em bajular a opinião nos seus critérios mais baixos; a clareza vizinha da tolice, a vida dos cães. Ressente-se com isso a atividade dos melhores espíritos; a lei do menor esforço afinal se impõe a eles como aos outros. Conseqüência divertida deste estado de coisas, em literatura, é a abundância dos romances. Cada um contribui com sua pequena”observação”. Por necessidade de depuração o sr. Paul Valéry propunha recentemente fazer antologia do maior número possível de começos de romances cuja insensatez ele muito esperava. Os mais famosos autores seriam chamados a participar. Tal idéia dignificava também Paul Valéry, que, não há muito, a propósito dos romances, me garantia que, ele, sempre se recusaria a escrever:”A marquesa saiu às cinco horas.” Mas cumpriu ele a sua palavra?

Se o escrito de informação pura e simples de que a frase precipitada é exemplo, tem emprego corrente nos romances certamente é por não ir longe a ambição dos autores. O caráter circunstancial, inutilmente particular, de cada notação sua, me faz pensar que estão se divertindo, eles, à minha custa. Não me poupam nenhuma hesitação do personagem: será louro, como se chama, vamos sair juntos no verão? Outras tantas perguntas resolvidas decisivamente, ao acaso; só me restou o poder discricionário de fechar o livro, o que não deixo de fazer, ainda perto da primeira página. E as descrições! Nada se compara ao seu vazio; são superposições de imagens de catálogo, o autor as toma cada vez mais sem cerimônia, aproveita para me empurrar seus cartões postais, procura fazer-me concordar com os lugares-comuns:

A salinha onde foi introduzido o moço era forrada de papel amarelo: havia gerânios e cortinas de musselina nas janelas; o sol poente jogava sobre tudo isso uma luz clara… O quarto não continha nada de particular. Os móveis, de madeira amarela, eram todos velhos. Um sofá com grande encosto inclinado, uma mesa oval diante do sofá, um toucador, com espelho, entre as janelas, cadeiras encostadas às paredes, duas ou três gravuras sem valor, representando moças alemãs com pássaros nas mãos – eis a que se reduzia a mobília. ( Dostoievski, Crime e Castigo )

Que o espírito se proponha, mesmo por pouco tempo, tais motivos, não tenho disposição para admiti-lo. Podem sustentar que este desenho clássico está no lugar certo e que neste passo do livro o autor tem seus motivos para me esmagar. Perde seu tempo, pois não entro no seu quarto. A preguiça, a fadiga dos outros não me prendem. Tenho da continuidade da vida uma noção instável demais para igualar aos melhores os meus momentos de depressão, de fraqueza. Quero que se calem, quando param de ressentir. E entendam bem que não incrimino a falta de originalidade pela falta de originalidade. Digo apenas que não faço caso dos momentos nulos de minha vida, que da parte de qualquer homem pode ser indigno de cristalizar aqueles que lhe parecem tais. Esta descrição de quarto, e muitas outras, permitam-me, digo: passo.

Ora, cheguei à psicologia, e com este assunto nem penso em brincar.

O autor pega-se com um personagem, e escolhido este, faz seu herói peregrinar pelo mundo. Haja o que houver, este herói, cujas ações são admiravelmente previstas, tem a incumbência de não desmanchar, parecendo porém sempre desmanchar, os cálculos de que é objeto. As vagas da vida podem parecer arrebata-lo, roda-lo, afunda-lo, ele sempre dependerá deste tipo humano formado. Simples partida de xadrez, da qual me desinteresso mesmo, sendo o homem, qualquer um, um medíocre adversário para mim. Não posso é suportar estas reles discussões de tal ou qual lance, desde que não se trata nem de ganhar nem de perder. E se o jogo não vale um caracol, se a razão objetiva prejudica terrivelmente, como é o caso, quem nela confia, não convirá fazer abstração destas categorias?”É tão ampla a diversidade, que todos os tons de voz, todos os passos, tosses assôos, espirros…” Se um cacho de uvas não tem duas sementes iguais, como querem que lhes descreva este bago pelo outro, por todos os outros, que dele faça um bago bom para comer? Esta intratável mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os cérebros. O desejo de análise prevalece sobre os sentimentos. Disso resultam dilatadas exposições cuja força persuasiva reside na sua própria singularidade, e que iludem o leitor pelo recurso a um vocabulário abstrato, bastante mal definido, aliás. Se as idéias gerais que a filosofia se propõe até aqui debater, marcassem por aí sua incursão definitiva num domínio mais extenso, seria eu o primeiro a me alegrar. Mas por enquanto é só afetação; até aqui os ditos espirituosos e outras boas maneiras nos encobrem à porfia o verdadeiro pensamento que se busca ele próprio, em vez de se ocupar em obter sucessos. Parece-me que todo ato traz em si mesmo sua justificação, ao menos para quem foi capaz de comete-lo, que ele é dotado de um poder radiante que a mínima glosa, por natureza, enfraquece. Devido a esta última ele deixa mesmo, de certo modo, de se produzir. Não ganha nada com esta distinção. Os heróis de Stendhal caem aos golpes deste autor, apreciações mais ou menos felizes, que nada acrescentam à sua glória. Onde os encontraremos de fato, é onde Stendhal os perdeu.

Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro, para submete-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso. Mas é importante observar que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que até segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas, tanto como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a serem seguidas.

Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com efeito, que esta parte considerável da atividade psíquica ( pois que, ao menos do nascimento à morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade, a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo a considerar só o sonho puro, o do sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade, digamos apenas: dos momentos de vigília ) não tenha recebido a atenção devida. A extrema diferença de atenção, de gravidade, que o observador comum confere aos acontecimentos da vigília e aos do sono, é caso que sempre me espantou. É que o homem, quando cessa de dormir, é logo o joguete de sua memória, a qual, no estado normal, deleita-se em lhe retraçar fracamente as circunstâncias do sonho, em privar este de toda conseqüência atual,  e em despedir o único  determinante do ponto onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas antes: esta esperança firme, este desassossego. Ele tem a ilusão de continuar algo que vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um parêntese, como a noite. E como a noite, geralmente também não traz bom conselho. Este singular estado de coisas parece-me conduzir a algumas reflexões:

1.º nos limites onde exerce sua ação ( supõe-se que a exerce ) o sonho, ao que tudo indica, é contínuo, e possui traços de organização. A memória arroga-se o direito de nele fazer cortes, de não levar em conta as transições, e de nos apresentar antes uma série de sonhos do o sonho. Assim também, a cada instante só temos das realidades uma figuração distinta, cuja coordenação é questão de vontade. Importa notar que nada nos permite induzir a uma maior dissipação dos elementos constitutivos do sonho. Lamento falar disso segundo uma fórmula que exclui o sonho, em princípio. Quando virão os lógicos, os filósofos adormecidos? Eu gostaria de dormir, para poder me entregar aos dormidores, como me entrego aos que lêem, olhos bem abertos; para cessar de fazer prevalecer nesta matéria o ritmo consciente de meu pensamento. Meu sonho desta última noite talvez prossiga o da noite precedente, e seja prosseguido na próxima noite, com louvável rigor. É bem possível, como se diz. E como não está de modo nenhum provado que, fazendo isso, a”realidade” que me ocupa subsista no estado de sonho, que Lea não afunde no imemorial, porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por vezes à realidade, seja este valor de certeza em si mesma, que, em seu tempo, não está exposta a meu desmentido? Por que não haveria eu de esperar do indício do sonho mais do que espero de um grau de consciência cada dia mais elevado? Não se poderia aplicar o sonho, ele também, resolução de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas as mesmas num caso como no outro, e no sonho elas já estão? O sonho terá menos peso de sanções que o resto? Envelheço, e mais que esta realidade à qual penso me adstringir, é talvez o sonho, a indiferença que lhe dedico, que me faz envelhecer;

2.º. retomo o estado de vigília. Sou obrigado a considera-lo um fenômeno de interferência. Não apenas o espírito manifesta, nestas condições, uma estranha tendência à desorientação (é a história dos lapsos e enganos de toda espécie cujo segredo começa a nos ser entregue) mas ainda não parece que, em seu funcionamento normal, ele obedeça a outra coisa senão a sugestões que lhe vêm desta noite profunda das quais eu recomendo. Por mais bem condicionado que ele esteja, seu equilíbrio é relativo. Mal ousa expressar-se, e se o faz, é para limitar à constatação de que tal idéia, tal mulher, lhe faz impressão. Que impressão, seria incapaz de dize-lo, dando assim a medida de seu subjetivismo, e nada mais. Esta idéia, esta mulher, o perturba, predispõe-no a menos severidade. Ela tem a ação de isola-lo um segundo de seu solvente e de deposita-lo no céu, como belo precipitado que ele pode ser, que ele é. Em desespero de causa, invoca ele o acaso, divindade mais obscura que as outras, à qual atribui todos os seus desvarios. Que me diz que o ângulo sob o qual se apresenta esta idéia que o afeta, o que ele ama no olho desta mulher não é precisamente o que o liga a seu sonho, o prende a dados que ele perdeu por sua culpa? E se isso fosse de outro modo, do que não seria ele capaz, talvez? Eu gostaria de dar-lhe a chave deste corredor;

3.º. o espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. A angustiante questão da possibilidade não mais está presente. Mata, vi mais depressa, ama tanto quanto quiseres. E se morres, não tens certeza de despertares entre os mortos? Deixa-te levar, os acontecimentos não permitem que os retardes. Não tens nome. É inapreciável a facilidade de tudo.

Que razão, eu te pergunto, razão tão maior que outra, confere ao sonho este comportamento natural, me  faz acolher sem reserva uma porção de episódios cuja singularidade, quando escrevo, me fulminaria? E no entanto, posso crer nos meus olhos, nos meus ouvidos: chegou o belo dia, esse bicho falou.

Se o despertar do homem é mais duro, se ele quebra muito bem o encanto, é que o levaram a ter uma raça idéia da expiação;

4.º. do momento em que seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a serem determinados, se chegar a nos dar conta do sonho em sua integridade (isto supõe um disciplina da memória que atinge gerações; mesmo assim comecemos a registrar os fatos salientes), quando sua curva se desenvolve com regularidade e amplidão sem iguais, então se pode esperar que os seus mistérios, não mais o sendo, dêem lugar ao grande Mistério. Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer.

Parto à sua conquista, certo de não consegui-la, mas bem despreocupado com minha morte, vou suputar um pouco os prazeres de tal posse.

Conta-se que todo o dia, à hora de dormir, Saint-Roux mandava colocar à porta de seu solar em Camaret um cartaz onde se lia: O POETA TRABALHA. Muito haveria ainda a dizer, mas de passagem, só quis aflorar um assunto que, por si só, necessitaria um alongado discurso e um maior rigor; voltarei a esse ponto. Desta vez, minha intenção era dizer a verdade sobre o ódio ao maravilhoso que grassa em certos homens, deste ridículo no qual o querem fazer cair. Falando claro: o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo.

No domínio literário, só o maravilhoso é capaz de fecundar obras dependentes de um gênero inferior, como o romance, e de modo geral, de tudo que participa da anedota. Uma prova admirável é O Monge, de Lewis. O sopro do maravilhoso o anima por inteiro. Bem antes de o autor ter libertado seus principais personagens de qualquer coerção temporal, já se percebe que estão prontos para agir com altivez sem precedente. Esta paixão da eternidade, que os exalta sem cessar, confere inesquecíveis acentos a seu tormento e ao meu. Entendo que este livro só exalta, do começo ao fim, e da forma mais pura do mundo, aquilo que do espírito aspira a deixar o chão, e que, despojado de uma parte insignificante de sua afabulação romanesca, à moda do tempo, constitui um modelo de justeza, de inocente grandiosidade. parece-me que não se fez melhor, e a personagem de Matilde, em particular, é a criação mais comovente que se possa pôr ao ativo deste modo figurado em literatura. É menos um personagem que uma contínua tentação. E se um personagem não é uma tentação, o que é? Tentação extrema aquela. O”nada é impossível a quem sabe ousar” dá em  O Monge toda a sua convincente medida. As aparições aí têm um papel lógico, pois que o espírito crítico não se apodera delas para contesta-las. Também o castigo de Ambrósio é tratado de maneira legítima, pois é finalmente aceito pelo espírito crítico como desenlace natural.

Pode parecer arbitrário que eu proponha este modelo, quando se trata do maravilhoso, do qual as literaturas no Norte e as literaturas orientais tiraram subsídios e mais subsídios, sem falar das literaturas propriamente religiosas de toda a parte. É que a maior parte dos exemplos que estas literaturas poderiam me fornecer estão eivadas de puerilidade, pela boa razão de serem dirigidas às crianças. Cedo elas são cortadas do maravilhoso, e mais tarde, não guardaram suficiente virgindade de espírito para sentirem extremo prazer com Pele de Asno. Por mais encantadores que sejam, o homem julgaria decair ao se nutrir de contos de fadas, e concordo que estes não são todos de sua idade. O tecido de adoráveis inverossimilhanças requer mais finura, à medida que se avança, e ainda se está à espera destas espécies de aranhas… Mas as faculdades não mudam radicalmente. O medo, a atração do insólito, as chances, o gosto do luxo são molas às quais não se apela em vão. Há contos a escrever para adultos, contos de fadas, quase.

O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo. Nestes quadros que nos fazem sorrir, no entanto sempre se pinta a inquietação humana, e é por isso que os levo a sério, que os julgo inseparáveis de algumas produções geniais, as quais, mais que as outras, estão dolorosamente impregnadas dessa inquietação. São os patíbulos de Villon, as gregas de Racine, os divãs de Baudelaire. Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu que tenho do gosto a idéia de um grande defeito. No mau gosto de minha época, procuro ir mais longe que os outros. Para mim, se eu tivesse vivido em 1820, para mim”a freira sangrenta”, a mim, não poupar este sorrateiro e banal dissimulons de que fala o periódico Cuisin, a mim, a mim, percorrer em metáforas, como ele diz, todas as fases do “disco prateado”. Por hoje, penso num castelo, cuja metade não está obrigatoriamente em ruína; este cabelo me pertence, eu o vejo num sítio agreste, não longe de Paris. Suas dependências não acabam mais e, quanto ao interior, foi terrivelmente restaurado, de modo a nada deixar a desejar, em matéria de conforto. Junto à porta, encoberta pela sombra das árvores, estão os automóveis, estacionados. Alguns de meus amigos aí estão, em permanência: eis o Louis Aragon que parte – ele só tem tempo para cumprimentar-nos; Philippe Soupault se levanta com as estrelas Paul Eluard, nosso grande Eluard, ainda não voltou. Eis Robert Desnos e Roger Vitrac, que decifram no parque um velho edital sobre o duelo; Georges Auric, Jean Paulhan, Max Morise, que rema tão bem, Benjamin Péret, em suas equações de pássaros; e Joseph Delteil; e Jean Carrive; e Georges Limbour (há uma fileira de Georges Limbour); e Marcel Noll; eis T. Traenkel que nos acena de seu balão cativo, Georges Malkine, Antonin Artaud, Francis Gerard, Pierre Naville, J. A . Boiffard, depois Jacques Baron e seu irmão, belos e cordiais, tantos outros ainda, e mulheres deslumbrantes, palavra. Estes jovens não podem se recusar nada, seus desejos são, para a riqueza, ordens. Francis Picabia vem nos visitar e, na semana passada, recebeu-se na galeria dos espelhos um tal Marcel Duchamp que ainda não se conhecia. Picasso caça aí por perto. O espírito de desmoralização ergueu domicílio no castelo, e é com ele que tratamos sempre que há problema de relação com nossos semelhantes, mas as portas estão sempre abertas, e sabeis, não se  começa”agradecendo” às pessoas. De mais a mais, a solidão é vasta, não nos encontramos muito. Pois o essencial não é sermos senhores de nós mesmos, das mulheres, do amor também?

Vão atribuir-me uma mentira poética; cada um vai dizer que moro na Rua Fontaine, e que não vai beber desta água. Na verdade! mas este castelo cujas honras lhe faço, tem ele certeza que seja uma viagem? E se, não obstante, o palácio existisse? Meus hóspedes estão aí para responderem por isso; seu capricho é a estrada luminosa que aí conduz. Vivemos de fato à nossa fantasia, quando estamos lá. E como o que um faz poderia incomodar o outro, ali, ao abrigo da procura sentimental e dos encontros ocasionais?

O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se por inteiro, isto é, manter em estado anárquico o bando cada vez mais medonho de seus desejos. A poesia ensina-lhe isso. Traz nela a perfeita compensação das misérias que padecemos. Ela pode ser também uma ordenadora, bastando que ao golpe de uma decepção menos íntima se tenha a idéia de tomá-la ao trágico. Venha o tempo quando ela decrete o fim do dinheiro e parta,  única, o pão do céu para a terra! Haverá ainda assembléias nas praças públicas, e movimentos dos quais não pensaste participar. Adeus seleções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, longas paciências, a evasão das estações, a ordem artificial das idéias, a rampa do perigo, tempo para tudo! Basta se Ter o trabalho de praticar a poesia. Não é a nós que compete, que já vivemos dela, o esforço de fazer prevalecer o que guardamos para nossa mais ampla inquietação?

Não importa se há desproporção entre esta defesa e a ilustração que vai segui-la. Tratava-se de remontar às fontes de imaginação poética, e mais ainda, ficar aí. Não tenho a pretensão de ter feito isso. É preciso muito domínio sobre si, para querer se estabelecer nestas recuadas regiões onde tudo parece andar tão mal, e com maior razão, para querer aí conduzir alguém. E nunca se tem certeza de aí estar em absoluto. Como não se vai gostar, fica-se disposto a se deter em outra parte. A verdade é que agora uma flecha indica a direção destes lugares e que alcançar a meta verdadeira só depende de resistência do viajante.

Conhece-se, pouco mais ou menos, o caminho percorrido. Tive o cuidado de contar, no decurso de um estudo sobre o caso de Robert Desnos, intitulado: ENTRADA DOS MÉDIUNS, que eu tinha sido levado a”fixar minhas atenções sobre frases mais ou menos parciais, que em plena solidão, quase pegando no sono, ficam perceptíveis para o espírito, sem ser possível descobrir-lhes uma determinação prévia”. Eu mal acabara de tentar uma aventura poética, com o mínimo de chances, isto é, minhas aspirações eram as mesmas de hoje, mas eu tinha fé na lentidão de elaboração para fugir a contatos inúteis, contatos que eu reprovava intensamente. Era o pudor do pensamento, de que me sobra ainda alguma coisa. No fim de minha vida, com dificuldade chegarei a falar como falam todos, culpa de minha voz e de meus gestos escassos. A virtude da palavra (da escrita: bem maior) me parecia ligada à faculdade de encurtar de modo marcante a exposição (pois era uma exposição) de alguns poucos fatos, poéticos ou outros, substanciais para mim. Em minha idéia, não era outro o processo usado por Rimbaud. Eu compunha, e o meu empenho de variedade merecia melhor sorte, os últimos poemas do Mont de Pieté, isto é, conseguia tirar das linhas em branco desse livro um partido incrível. Essas linhas eram o olho fechado sobre operações de pensamento, que, julgava eu, deviam ser ocultadas do leitor. Não era trapaça, mas sim, gosto de precipitar as coisas. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade possível, cada vez menos dispensável para mim. Eu pegara o vezo de afagar imoderadamente as palavras pelo espaço admitido em torno delas, por suas tangências com outras inumeráveis palavras não pronunciadas por mim. O poema FLORESTA-NEGRA marca exatamente este estado de espírito. Passei seis meses a escrevê-lo e, podem acreditar, não descansei um só dia. Mas tratava-se da estima que eu então me dedicava, não é bastante, compreendam. Adoro estas confissões estúpidas. Naquele tempo, a pseudopoesia cubista procurava se implantar, mas saíra desarmada do cérebro de Picasso, e quanto a mim, eu era tido como tão enfadonho quanto a chuva (ainda sou). Eu desconfiava, aliás, que do ponto de vista poético, eu estava no caminho errado, mas eu me safava como podia, desafiando o lirismo, a golpes de definição e de receitas (os fenômenos Dada não tardariam a se manifestar), e fingindo encontrar uma aplicação da poesia na publicidade (eu sustentava que o mundo acabaria, não por um belo livro, mas por uma bela propaganda do inferno e do céu).

Na mesma época, um homem, tão ou mais enfadonho que eu, Pierre Reverdy, escrevia:

A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidade mais ou menos remotas. Quanto mais longínquas e justas forem as afinidades de duas realidades próximas, tanto mais forte será a imagem – mais poder emotivo e realidade poética ela possuirá… etc.

Estas palavras, se bem que sibilinas para os profanos eram indicadores muito fortes, e sobre elas meditei longamente. Mas a imagem era fugidia. A estética de Reverdy, estética toda a posteriori, fazia-me tomar os efeitos pelas causas. Entrementes, fui obrigado a renunciar definitivamente a meu ponto de vista.

Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente articulada a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra, mas bem separada do ruído de qualquer voz, uma frase bem bizarra que me alcançava sem trazer indício dos acontecimentos aos quais, segundo o testemunho de minha consciência, eu estava preso, nessa ocasião, frase que me pareceu insistente, frase, se posso ousar, que batia na vidraça. Rapidamente tive a sua noção, e já me dispunha a passar adiante quando o seu caráter orgânico me reteve. Na verdade, esta frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era algo como:”Há um homem cortado em dois pela janela”, mas não poderia haver ambigüidade, acompanhada como estava pela fraca representação visual de um homem andando, e seccionado a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo de seu corpo. Fora de dúvida era a simples aprumação no espaço de um homem debruçado à janela. Mas esta janela tendo seguido o deslocamento do homem vi que se tratava de uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la a meu material de construção poética. Assim que lhe concedi este crédito ela deu lugar a uma sucessão quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam menos e me deixaram sob a impressão de uma tal gratuidade que me pareceu ilusório o império que até então eu mantinha sobre mim mesmo, e só pensei então em liquidar a interminável disputa travada em mim (Knut Hamsun põe na dependência da fome este tipo de revelação que me assaltou, e talvez não esteja ele errado (o fato é que nessa época eu não comia todos os dias). Com toda certeza são de fato as mesmas manifestações que ele relata nestes termos:

“No dia seguinte acordei cedo. Estava ainda escuro. Meus olhos estavam abertos fazia tempo, quando ouvi o relógio do apartamento inferior bater cinco horas. Quis novamente dormir mas não consegui, eu estava completamente desperto e mil coisas baralhavam na minha cabeça. De repente me vieram uns bons trechos, próprios para utilização num esboço, num folhetim; subitamente, por acaso, achei frases muito bonitas, frases como jamais escreverei. Eu as repetia lentamente, palavra por palavra, eram excelentes. E vinham mais outras. Levantei-me, peguei lápis e papel na mesa atrás de minha cama. É como se eu tivesse rompido uma veia, uma palavra seguia outra, colocava-se em seu lugar, surgiam as réplicas, em meu cérebro, eu gozava profundamente. Os pensamentos me vinham tão rapidamente e fluíam tão abundantemente que eu perdia uma porção de detalhes delicados, porque meu lápis não podia andar tão depressa, e entretanto eu me apressava, a mão sempre em movimento, eu não perdia um minuto. As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe de meu assunto”.

Apollinaire afirmava que os primeiros quadros de Chirico haviam sido pintados sob a influência de distúrbios cenestésicos (enxaquecas, cólicas).

Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante a guerra, que decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja tão exatamente quanto possível o pensamento falado. Parecia-me, ainda me parece – a maneira como me chegara a frase do homem seccionado o comprovava – que a velocidade do pensamento não é superior à da palavra e que ele não desafia forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre. Foi com estas disposições que Philippe Soupault, a quem eu comunicara estas primeiras conclusões, e eu começamos a escrevinhar, pouco nos importando com o que pudesse suceder literariamente. A facilidade de realização fez o resto.

No fim do primeiro dia podíamos ler umas cinqüenta páginas obtidas por este meio, e começar a comparação de nossos resultados. No conjunto, os de Soupault e os meus mostravam notável analogia: mesmo vício de construção, falhas similares, mas também, de cada lado, a ilusão de um estro maravilhoso, muita emoção, escolha considerável de imagens de uma tal qualidade que não teríamos sido capazes de preparar uma só delas, mesmo com muito empenho, um pitoresco muito especial, e de um lado e de outro, alguma proposição de pungente burlesco. As únicas diferenças entre nossos dois textos me pareceram corresponder essencialmente a nossos temperamentos recíprocos, o de Soupault menos estático que o meu, e se ele me permite esta leve crítica, ao fato de Ter ele cometido o erro de distribuir, ao alto de certas páginas, e sem dúvida por espírito de mistificação, algumas palavras à guisa de títulos. Em compensação, devo-lhe a justiça de dizer que ele se opôs sempre, com toda energia, a qualquer retoque, à mínima correção ao curso de toda passagem desse gênero que me parecia até descabida. Tinha ele toda razão nisso. É com efeito muito difícil apreciar em seu justo valor os diversos elementos presentes, diga-se mesmo, é impossível apreciá-los numa primeira leitura. A vós que escreveis, estes elementos, na aparência, vos são tão estranhos quanto a outro qualquer, e naturalmente desconfiais. Falando poeticamente, eles se reconhecem sobretudo por um alto grau de absurdidade imediata, sendo o próprio desta absurdidade, num exame mais aprofundado, dar lugar a tudo que há de admissível, de legítimo no mundo: a divulgação de certo número de propriedades e de fatos não menos objetivos, em suma, que os outros.

Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. Creio não ser mais necessário, hoje, repisar esta palavra, e que a acepção em que a tomamos acabou por prevalecer sobre a acepção apollinairiana. Ainda com maior razão poderíamos ter-nos apossado da palavra SUPERNATURALISMO, empregada por Gerard de Nerval na dedicatória de Filles de Feu. Com efeito, parece que Nerval possuiu às mil maravilhas o espírito ao qual recorremos, enquanto Apollinaire não possuía senão a letra, ainda imperfeita, do surrealismo, tendo sido incapaz de lhe traçar um esboço teórico que valha a pena. Eis duas frases de Nerval que acerca disso me parecem bem significativas:

Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, o fenômeno que você citou acima. Como você sabe, há certos contistas que não podem inventar sem se identificarem aos personagens de sua imaginação. Você sabe com que convicção nosso velho amigo Nodier narrava como ele tivera a desgraça de ser guilhotinado na época da Revolução; ficava-se de tal modo persuadido que se ficava querendo saber como ele conseguira recolocar sua cabeça.

… E já que você teve a imprudência de citar um soneto composto neste estado de devaneio onírico SUPERNATURALISTA, como diriam os alemães, vai ouvi-los todos. Não são nada mais obscuros do que a metafísica de Hegel ou as MEMORÁVEIS de Swedenborg, e perderiam encanto se fossem explicados, se a coisa fosse possível, conceda-me ao menos o mérito da expressão…

Só com muita fé poderiam nos contestar o direito de empregar a palavra SURREALISMO no sentido muito particular em que o entendemos, pois está claro que antes de nós esta palavra não obteve êxito. Defino-a pois uma vez por todas.

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.

ENCICL. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associações desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos, e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida. Deram testemunho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gerard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.

Parece que são, até agora, os únicos, e não haveria engano, não fosse o caso apaixonante de Isidore Ducasse, sobre o qual me faltam elementos. E certamente, não considerando senão superficialmente seus resultados, bom número de poetas poderiam passar por surrealistas, a começar por Dante, e, em seus melhores dias, Shakespeare. No curso das diferentes tentativas de redução, em que empenhei, do que se chama, por abuso de confiança, o gênio, nada encontrei que se possa finalmente atribuir a outro processo que não seja este.

As NOITES de Young são surrealistas do começo ao fim; infelizmente é um padre que fala, mau padre, sem dúvida, mas padre. Swift é surrealista na maldade. Sade é surrealista no sadismo. Chateaubriand é surrealista no exotismo. Constant é surrealista em política. Hugo é surrealista quando não é tolo. Desbordes-Valmore é surrealista em amor. Bertrand é surrealista no passado. Rabbe é surrealista na morte. Poe é surrealista na aventura. Baudelaire é surrealista na moral. Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures. Mallarmé é surrealista na confidência. Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo. Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo. Fargue é surrealista na atmosfera. Vaché é surrealista em mim. Reverdy é surrealista em sua casa. Saint-John Perse é surrealista a distância. Roussel é surrealista na anedota. Etc.

Insisto, eles nem sempre são surrealistas, neste sentido que descubro neles um certo número de idéias preconcebidas, às quais, bem ingenuamente, eles se apegavam. Apegavam porque ainda não tinham ouvido a voz surrealista, a que continua a pregar à véspera da morte e acima das tempestades, porque não queriam servir somente para orquestrar a maravilhosa partitura. Eram instrumentos soberbos demais, e por isso nem sempre produziram som harmonioso.

Nós, porém, que não nos dedicamos a nenhum trabalho de filtração, que nos fizemos em nossas obras os surdos receptáculos de tantos ecos, modestos aparelhos registradores que não se hipnotizam com o desenho traçado, talvez sirvamos uma causa mais nobre. Assim devolvemos com probidade o”talento” que nos atribuem. Falem-me do talento deste metro de platina, deste espelho, desta porta, e do céu, se quiserem.

Não temos talento, perguntem a Philippe Soupault:

“As manufaturas anatômicas e as habitações baratas destruindo as mais importantes cidades”.

A Roger Vitrac:

“Recém-invocara eu o mármore-almirante  (A Mesa de Mármore era um Tribunal instalado no Palácio de Justiça em Paris, realizando suas sessões numa imensa mesa de mármore, que lhe deu o nome; era de sua alçada o julgamento de militares, e sua jurisdição tinha três divisões: o almirantado, as florestas e águas, e a área do condestável) quando este virou nos calcanhares como um cavalo que se empina diante da estrela polar e me indicou no plano de seu chapéu bicorne uma região onde eu devia passar a minha vida”.

A Paul Eluard:

“Conto uma história bem conhecida, releio um poema célebre: estou apoiado a um muro, orelhas verdejantes, lábios calcinados”.

A Max Morise:

“O urso das cavernas e sua companhia que mia, o volante e seu valete no vento, o grão-chanceler com sua mulher, o espantalho e seu amigo alho, a fagulha com agulha, o carniceiro e seu irmão carnaval, o varredor com o seu tapa-olho, o Mississipi e seu sapo, o coral e o colar, o Milagre e seu santo por favor desapareçam da superfície do mar”.

A Joseph Delteil:

“Ai de mim! Creio na virtude das aves. E basta uma pena para me matar de rir!”.

A Louis Aragon:

“Durante uma interrupção da partida, quando os jogadores, reunidos, rodeavam a poncheira escaldante, perguntei à árvore se ainda tinha sua fita vermelha”.

A mim mesmo, que não pude me impedir de escrever as linhas serpentinas, alucinantes, deste prefácio.

Perguntem a Robert Desnos que, dentre nós, foi talvez quem mais se aproximou da verdade surrealista, aquele que, em obras ainda inéditas e ao longo de múltiplas experiências às quais prestou, justificou plenamente a esperança que eu depositava no surrealismo e me intima a esperar muito dele ainda. Hoje em dia Desnos fala surrealista à discrição. A prodigiosa agilidade de que ele dispõe para seguir oralmente seu pensamento nos vale, quanto nos apraz, discursos esplêndidos, e que se perdem, Desnos tendo mais que fazer do que fixa-los. Ele lê em si como em livro aberto, e nada faz para reter as folhas que se desvanecem no vento de sua vida.

Tecnoxamanismo no rádio 27.03.2014

Fabs e Livs aproveitam os novos fluxos da rádio para seguir a gambiarra tecnoxamanica da fala pelo espectro. Com convidados espontâneos e atraídos pela sincronia (Lohan, Kadu e Luiza) dando ideias e se empolgando com o pensar mundo criativo. Cosmologia, espaço sideral, MARS, sentido da vida, catástrofe, novos olhares, Carlos Castaneda, xamanismo e tecnologias ultra avançadas se misturam em um papo que já superou a linearidade.

Gostou do que ouviu? Ajude-nos a inspirar mais pessoas: catarse.me/pt/tecnoxamanismo

https://soundcloud.com/pennyleska/tecnoxamanismo-27-03-2014

Mais alucinações Tecnoxamanicas, ciberespirituais, digitalmente ocultas

A maravilhosa Fabi Borges e sua alucinada companheira Lívia seguem pelos labirintos mágicos do tecnoxamanismo revolucionário. Debatem alienígenas, rituais de magia do CAOS, cinema e roda de cura, índio é nós e, como não poderia faltar, o festival que se aproxima!

https://soundcloud.com/pennyleska/tecnoxamanismo-20-03-2014

Gostou do programa? Ajude nessa construção! catarse.me/pt/tecnoxamanismo

Causando na ECO/UFRJ

Hoje acordei causando. Cheguei cedo na aula de Legislação e Ética em Publicidade e Propaganda e lá estava o professor com cara de cansado e irritado por estar ali. Eram 09:30 e não tinha nenhuma alma viva na sala. Eu pergunto: “Que horas começa essa aula mesmo?” e ele com a maior naturalidade: “09:30”. Ainda espero mais uns 20 minutos para que ele resolva então começar a aula para os 5 alunos presentes.

A sala vai enchendo aos poucos e ele começa a ler os artigos do código de ética de publicidade. Ele avisa que não tem pasta para que nós possamos tirar xerox e acompanhar a leitura enfadonha e ainda não teve tempo de enviar os arquivos para os alunos. Estamos em Março. Segue a leitura em voz lenta e repetitiva. Olho ao meu redor, um aluno único acompanha o texto no ipad enquanto os outros 20 estão focados nos seus celulares ou dormindo.

Eu não tenho mais a capacidade de focar minha atenção durante tanto tempo em tamanha chatice. Muito menos meus colegas mais novos que eu. Somos alunos de comunicação, estamos conectados o dia inteiro! O atention span dos jovens não é mais o mesmo e parece que alguns professores se recusam a se adaptar a isso. O cara não tem a sensibilidade de olhar pra turma e perceber que apenas UM aluno está prestando atenção? Mesmo que eu queira em poucos minutos minha mente se vai para longe dali. É chato demais ouvir um cara ler artigos e leis sentado em sua mesa sem nenhum tipo de estímulo.

Eu pressiono: “Professor, você tem como colocar o texto na televisão? Fica difícil acompanhar assim.” e ele, cagando: “Não, não tenho o texto no tablet”.

A situação é tão absurda que minha imaginação já começa a imaginar que são a UFRJ e empresas pagando esse professor para não ensinar as legislação aos alunos pensantes da ECO. Afinal, para criticá-la é preciso conhecê-la. E existe algum pedaço de legislação que mais precisa ser reformulado do que o que permite essa publicidade predatória que destrói valores e singularidades como se fosse confete dos dias atuais?

Eu não sou palhaça e meu tempo é valioso. Não posso aceitar que a minha universidade permita uma aula sem a mínima metodologia como a desse professor que está ali em um trabalho que é um dos meus sonhos de vida, professor da Escola de Comunicação da UFRJ, como se estivesse fazendo um favor pra alguém. Resolvi vir pra casa assistir CS50, o curso de programação de Harvard que tem uma das metodologias de ensino mais impressionantes que já vi na vida. Penso que hoje em dia o mercado é global. Como posso competir com esses jovens depois dessa merda dessa aula?

Decido partir mas acho injusto ter que “respeitar” um professor que na minha opinião está desrespeitando a mim e subestimando a minha inteligência. Interrompo a aula, me levanto e digo: “Bom gente, eu quero aprender. Acho importantíssimo aprender legislação. Mas essa metodologia de aula, pra mim, não dá.” And I storm out the room.

Não como ficaram os coleguinhas de turma. Chocados provavelmente pelo menor indício de conflito em suas vidas. Mas espero que pelo menos um ou outro tenha percebido que nós temos que exigir melhores aulas!

Choose Life

choose-life

O proselitismo vivo na Rádio Interferência

Na Rádio Interferência diz-se sempre não a qualquer tipo de proselitismo. Até o dia em que diz-se sim.

Faz uma semana que saí da reunião da rádio aos prantos e decidi nunca mais retornar. Apaguei meu programa da grade e cortei amizades recentemente feitas no espaço comum onde todos dizem encantar-se com a convivência das diferenças. Saí aos prantos não por ter sido desrespeitada por uma daquelas lideranças que não se admitem lideranças (aquela ladainha de coletivo horizontal, não hierárquico, não representativo) então se veem livres pra comportar-se como anarcoirresponsáveis e meros idiotas, mas sim porque sofri uma opressão proselitista exatamente onde me prometeram que isso jamais aconteceria. Ele me prometeu tantas vezes.

Proselitismo significa considerar superior ou inferior qualquer tipo de prosa, ou seja, de crença, de discurso, de esperança, de sonho, de religião, de opção política ou sexual, etc.. Um espaço não proselitista é um espaço que respeita a todas as opções e histórias de vida igualmente, sem nunca considerar uma ideia ou pessoa melhor ou pior que a outra. Negros, mulheres, lésbicas, gays, comunistas, socialistas, anarquistas, partidários, independentes, fanfarrões, playboys, periferia, professores e alunos convivem respeitando mutuamente as ideias proliferadas no microfone e pelo espectro eletromagnético.

Porém o mesmo respeito não acontece com os esotéricos. Fui chamada em plena reunião de alucinada por causa da minha crença nos astros e nas cartas do Tarot. Ele disse que acha que eu sou tão perdida que decido meu caminho pelas cartas. Gritava: “A ALUCINADA DA PENNY!”. Tudo isso porque lhe dei uma informação que recebi durante o dia de que a Mídia Ninja e a ex-diretora da escola de comunicação da UFRJ, Ivana Bentes, tinham planos em transformar o Pontão (tradicional espaço de resistência da cultura digital) em um Lab-Ninja (núcleo oportunista da rede fora do eixo que fará campanha para o PT esse ano). Como estudante da ECO, já vejo movimentações de aproveitamento dos recursos (financeiros e humanos) da escola para o fortalecimento do Fora do Eixo desde Junho mas nunca me tinha sido confirmada tal movimentação para cima do Pontão. Nem por ele que lá trabalha. Pensei mesmo que fosse uma informação privilegiada e disse: “Cuidado. Acho que você não sabe pra quem você está trabalhando”. Ele tomou isso como uma agressão ao trabalho de resistência que faz no espaço do Pontão e me respondeu naquela estratégia baixa de desqualificação pessoal em cima das minhas práticas e crenças de vida. Como se isso fosse mudar a realidade da tomada do Pontão pelo Fora do Eixo.

O seu nervosismo com a minha afirmação apenas garante que a carapuça serviu. Mas ele seguiu sem dar tréguas ou chance de debate me agredindo com base no pouco conhecimento sobre a minha vida pessoal que veio acumulando nestes últimos 6 meses que convivemos diariamente no espaço da rádio. E sempre estivemos lado a lado. Eu confiei nele.

No meio da briga, eu percebi o seu nervosismo e a sua desqualificação da minha pessoa para evitar o debate político e chamei atenção a este fato. Ele, ainda mais desesperado, olhou pra mim com um desprezo total da minha inteligência e disse: “Leitura política? De você? Eu não vejo.” Sem saber nada que eu já fiz na minha vida, de que processos políticos já participei ou o que já vivi. Simplesmente não fico dando carteirada de experiências passadas. Não construo com gente que considera esse tipo de legitimidade importante. Construo com gente que constrói com gente, quem quer que seja.

As agressões seguiram. Enquanto ele as proliferava em total descontrole, eu as absorvia lhes dando o peso que merecem todas as palavras. Existe um enorme descompasso entre pessoas que as valorizam muito e as valorizam nada. Ele é uma destas de palavras vazias, não respeita nem as suas, nem as dos outros. As usa como isca para capturar jovens iludidos e depois esquece ou espera que aconteçam magicamente. Eu já não acredito em mais nada que ele diz. Tudo me confunde e transtorna pela tamanha aleatoriedade e desconexão de suas falas. E lá foi ele, vomitando palavras malignas em cima de mim sem se importar com as consequências do dia seguinte. Como lhe é de praxe.

Ao final de tudo, dei meu parecer: “Nunca mais falo com você. Só não te dou um tapa na cara porque você é um velho.” E é isso que ele é. Sua incapacidade de entender meu esoterismo, meu esforço em criar novos paradigmas de pensamento e me fazer de cobaia na construção de um novo mundo é característica dessa geração antiquada que hoje encontra-se ditando as regras desse mundo de merda. Como se essa arrogância humana de acreditar apenas no que o homem pode provar através da ciência racional (dominada pelas grandes corporações de pesquisa privada e a academia) fosse sã. E a minha crença em conhecimentos milenares, tradicionais, cabalísticos, mitológicos, cosmológicos que me guiam e apoiam em meio a toda essa escuridão capitalista em que vivo fosse alucinação.

Mal sabe ele que, na minha alucinação esotérica, eu já vinha recebendo inúmeros sinais me chamando atenção para um ciclo que precisava ser encerrado. Eu nunca esperei que fosse ser o ciclo que iniciei com tanto amor e dedicação na Rádio Interferência da qual sou programadora desde 2006. Mas a hipocrisia proselitista acabou por fazer cair diversas fichas, conectar os pontos e representar a escolha de outro caminho onde depositarei minhas energias. Ficam meus votos de vida longa à Rádio Interferência. Ainda frequentarei a rádio pra fazer um programa semanal às quintas-feiras sobre tecnoxamanismo e, durante meu horário autônomo, ele está proibido de pisar na sala, mantenho minhas palavras que valorizo: nunca mais falo com ele. Preciso saber onde deposito a semestralidade.

Concluo deixando uma dica para esses tempos escuros de repressão às Rádios Livres antes da Copa do Mundo: está cada vez mais difícil manter um coletivo forte e unido. Talvez seja pela liquidez das relações entre as pessoas ou pela efemeridade dos interesses nesse mundo em constante mudança. Independente dos motivos, devemos valorizar aqueles que ainda se dedicam ao coletivo ao invés de agredir e tratar como descartável qualquer um que se importa tanto com a causa que arrisca fazer algumas críticas a determinadas lideranças. E o coletivo precisa se posicionar em relação a injustiças e agressões pessoais constantemente repetidas pela mesma pessoa. Não sou a primeira e nem serei a última a sair da rádio por causa dele.