Melissandra leva uma vida dupla há alguns anos.
Por fora ela é boa uma filha e neta, trabalha em um hotel, já viveu muitas coisas, passou por muitas fases e nunca se encontrou muito profissionalmente. Está solteira há alguns anos, tem medo do amor. É uma ativista frustrada tentando compreender melhor as dinâmicas da realidade do ser humano e as escolhas coletivas. Ela mora na casa da sua família, se esforça pra perdoar, ser grata, ser humilde, fazer regime e acorda por volta das 11:00 pra chegar no trabalho 12:00. Come arroz, feijão e filé de frango no almoço no refeitório do trabalho, atende hóspedes em inglês, espanhol e português.
Ninguém sabe o que se passa por dentro dela, quando ela está sozinha no seu quarto.
Esse outro lado, o seu lado selvagem, o lado que não está nem aí pras escolhas coletivas da humanidade, está farta de tanta humildade que é preciso ter para não magoar os delicados seres humanos, o lado que viaja por outras dimensões, se conecta com os espíritos, faz amor tântrico com um monge, bota uma mochila nas costas e sai viajando guiada por cartas de tarot e numerologia, o lado que é fora da caixa, que acha essa vida material do Rio de Janeiro-Ipanema-Copacabana a coisa mais chata do mundo, o lado que não aguenta mais se vestir com essas roupas da moda, que não aguenta mais ouvir pessoas falando de uma notícia que deu no jornal atrás da outra vendo a vida passar, o lado que quer fazer jejum, correr na praia, pegar uma insolação, se apaixonar perdidamente por alguém tão alucinado quando ela, quer sentir intensamente novamente. O lado que alimenta o cérebro de meditação e cogumelos mágicos. Que transmuta energias e tem visões. Esse outro lado está muito puto.
As experiências mais importantes de sua vida vem desse lado. Mas por algum motivo, Melissandra reprime isso, não conta pra ninguém, sente vergonha. É como se ela não acreditasse que isso tem valor porque todos ao seu redor lhe dizem que isso não é normal. Essas coisas não existem. Você está louca. Só que ela se sente profundamente entediada. Um tédio ancestral. Nada a agrada mais enquanto esse lado não assumir sua vida. Ela está cansada de disfarçar, de tentar ser normal, de agradar os outros. Farta dessa vidinha material vazia de sutilezas e conexão com o divino. Ela olha ao seu redor e não consegue compreender como ninguém mais sente isso. Talvez ela esteja sendo muito radical, aceitar as diferenças é ainda um dos seus desafios. Como aceitar a aceitação dessa situação de vida em que as pessoas se colocaram?
Ela nunca se sentiu tão entediada. Está gorda de tanto tentar alimentar sua fome de vida. Tem olheiras ao redor dos olhos de tanta energia que gasta tentando ser alguma coisa que não é. Está perdendo todo seu cabelo se preocupando com coisas desimportantes para não olhar pra essa repressão. Seus orgasmos são um pouco menos intensos pra evitar a liberação de energia. Suas roupas são nude e cinzas pra não dar vazão às cores da sua alma. Suas conversas tão vazias quanto as de todo mundo. Ela está E-X-A-U-S-T-A. Passa a maior parte do seu tempo dormindo em pé e deitada. Está completamente entorpecida de doces e carnes, cigarro e instagram.
E por isso tudo, está indo embora. Antes que ela caia dura, morta no chão de tédio.
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