Joana e Luna

No dia 25 de Maio de 1992, Joana perdeu seu filho. Ele tinha 35 anos e era a luz de sua vida. Tinha olhos claros e cabelo louro, ela o via como um anjo na terra. Sua vida mudou para sempre. Ela jamais se recuperaria dessa perda. Passou meses chorando. A única coisa que ela tinha que lhe dava alguma força para viver era uma netinha, Luna. Toda vez que Luna a via chorar, se aproximava dela para lhe fazer um afago, secar suas lágrimas e dizia: “Não chore vovó.”

Aos poucos Joana foi se entregando para essa netinha. Talvez como uma forma de manter-se viva. Foi focando toda sua atenção nessa menina, projetando todo seu amor perdido em cima dela. Passou a se preocupar exclusivamente dela. Pensava o dia inteiro, toda hora, a cada segundo que passava na neta. Para não olhar pro seu vazio, o preenchia de mais e mais Luna.

Alguns anos se passaram e os pais de Luna se separaram. Seu pai foi embora para nunca mais voltar e a mãe estava trabalhando, não tinha tempo de ficar com ela. A avó prontamente ficou a cargo da amada netinha. Ela buscava Luna no colégio, levava pra natação, fazia suas unhas, cortava seu cabelo, lhe dava banho, comprava revistas… Tudo para Luna. O tempo todo.

Essa avó também buscava problemas pra ocupar a cabeça. E passou a focar toda sua energia no pai de Luna. Ela passava o dia xingando ele, transformando ele em um verdadeiro monstro aos olhos de sua filha. Não parava de falar um segundo do mal caráter que ele era. Luna não entendia perfeitamente porque ele tinha ido embora e foi obrigada a parar de amá-lo para não desagradar a avó. Na verdade, sem pai e nem mãe, Luna só tinha aquela referência de amor.

Às vezes ela queria cobrir as orelhas com as mãos e gritar para que a avó parasse de xingar seu pai mas só ficava calada. Aos poucos foi criando alguns mecanismos próprios de defesa, começou a focar sua atenção em outra coisa quando a avó começava a falar. Toda vez que ela abria a boca, sua atenção imediatamente se fechava. A avó podia falar durante horas que Luna já não ouvia mais.

Ela foi crescendo e o foco da sua avó seguia firme e forte em cima dela. Agora menos no seu pai, ela passou a reparar no seu cabelo, unhas, roupas, corpo, estudos, amigos… Queria saber onde estava a neta o tempo todo. Ligava pra sua casa 5 vezes ao dia perguntando sobre ela. Luna já estava se tornando uma adolescente mais rebelde e rejeitava todos os conselhos conservadores e preconceituosos da avó silenciosamente em sua mente.

Ela cresceu ainda mais, a avó sem largar a mão do vício na neta. Luna já a odiava. Odiava aquele papel que ela não teve escolha de assumir. Odiava ouvir a voz da sua avó. Odiava que aquela era a pessoa que mais lhe amava no mundo. Odiava esse amor.

A vida acabou decepcionando Luna de diversas formas e ela começou a fechar sua atenção para todas as pessoas, como fazia com a avó. Quando as pessoas falam com ela, ela responde sem quase perceber sua presença. Todos se tornaram espíritos ao seu redor. Vagando pela vida de Luna. Ela já não consegue mais ouvir o outro. Só escuta a si mesma, passa o dia inteiro falando consigo mesma na sua cabeça.

Mas agora Luna já está com 27 anos e sua avó ainda a obsedia. Ela agora mora com a avó por questões com a mãe e a avó tomou para si todo o papel de sua criação. Ela não consegue se libertar dessa avó. Ela não consegue nem se sustentar sem essa avó. Ela vive para alimentar essa avó de energia. Seja discutindo, seja brigando, seja conversando e fingindo que se amam. Luna não tem certeza se ama a avó ou odeia mas ela acaba fingindo que ama porque precisa dela pra tudo. Ela se permite obsediar por interesses de sobrevivência. Ela sente uma culpa terrível nessa co-dependência.

Luna não acredita que pode se libertar dessa relação. Ela não se sente no direito de abandonar sua avó que tanto a ama. E não há maneiras de diminuir essa obsessão, ela já tentou conversar várias vezes. É mais forte que Joana. É mais forte que Luna.

Só que Luna está cansada de ficar só. De viver apenas para sua avó. Está cansada de não ouvir o outro. Está cansada de não valorizar as palavras alheias. Está cansada de só conversar consigo mesma. Luna está muito cansada e só quer ser deixada em paz.

Morgana

Morgana está vivendo a experiência humana completamente. Está entregue para esse mundo que tanto ama e admira. Sua missão é mostrar aos homens o valor dessa experiência. Ela acredita que o homem se esqueceu ou nunca soube da sua majestade. Quando ela os olhava de outros planos, ficava imaginando como seria estar entre eles. Ela nem precisaria ser mulher, pensava. Podia ser uma planta, um cavalo, uma cobra naja! Cada animal que ela observava de longe, os botos cor de rosa, as baleias, os jaguares, as zebras, os hipopótamos, aqueles bichos luminosos das profundezas do mar… Todos lhe encantavam. Ela achava aquilo a coisa mais incrível do mundo! Olhava pro homem como o último de todos os animais, o rei do planeta, o mais incrível de todos. Mas percebia que o homem não conseguia ver a si mesmo… Ela se perguntava porque isso acontecia e passou a analisar, estudar e observar durante muitos séculos. Até que chegou um momento que começou a pedir a oportunidade de vir experimentar esse jogo que começa quando nascemos. Pediu durante milhares de anos, enquanto observava e aprendia. Um dia, lhe foi permitida a sua vinda para o planeta terra. Foi um dia glorioso!! Ela sentiu-se muito animada! Passou outros mil anos organizando sua vinda. Planejando cada segundo. Ela quer mostrar aos homens a força que eles tem! Como eles são incríveis! Como eles são perfeitos e divinos.

Mal chegou aqui e começou a se esquecer da sua natureza e da sua missão. Entrou pro jogo que tanto queria jogar. Passou anos vivendo a vida por viver e vivia com muita intensidade. Muito prazer, muita loucura, muitas pessoas, muitas experiências e muito sofrimento também. Foi magoada, abusada, machucada, abandonada… Perdeu a fé no em si como humano. Entrou pra esse inconsciente coletivo de que a humanidade não presta, de que estamos destruindo a nós mesmos e de que nossa raça em breve será extinta por nossa própria culpa. Começou a sonhar com uma outra vida, em um outro tempo, em um outro lugar… Aos poucos foi se desconectando do mundo. Perdeu o interesse nos humanos. Ficou de cama durante muito tempo… Vendo televisão e se distraindo, esperando a vida passar.

Um dia ela teve um sonho em que buscava quartos para alugar em um cemitério. Estava realmente vivendo por não ter coragem de se matar. E ela pensou nisso. Passou uma semana pensando nisso. Chegou a seu fundo do poço. Mas o bom de chegar no fundo é que só tem um caminho de volta. Depois daquela semana, ela percebeu que precisava mudar sua vida completamente! Fazer qualquer coisa. Foda-se. Deixar aquela sensação inexplicável de que tinha uma missão importante pra trás e ir se mover.

Arrumou um emprego como caixa de uma Pet Shop em Copacabana.

Jonas

Jonas acredita que não vai conseguir. Durante a separação de seus pais, Jonas passava muito tempo com sua velha avó Angelina. Como a maioria de sua geração, Angelina já foi tomada pelo negativo. Tudo é perigoso! Tudo é uma ameaça! Tudo é errado. Tudo é ruim. Angelina falava para Jonas do mundo na época em que seu mundo caiu. E pra ela o mundo era mau. Ela mesma não era lá uma pessoa muito boa não, já estava viciada no prazer de ver e falar de desgraça. Seus assuntos favoritos eram: falta de dinheiro, gordura e câncer.

Jonas ficou muito abalado com a separação de seus pais e com a queda de seu mundo perfeito. Até então, tinha uma família de comercial de margarina. Após o divórcio, sua mãe precisou ir trabalhar e ele acabou ficando a mercê das ideias dessa avó.

Essa foi a época em que ele começou a fazer terapia. Ele chegou no consultório do mais badalado psiquiatra na cidade de Nova Friburgo. Muito bem recomendado por uma das amigas socialites da mãe. Se sentou no sofá esperançoso. Alguma coisa não estava bem com ele, sua vida estava muito difícil. Ele contou brevemente para uma psicóloga responsável por diagnosticar adolescentes que durante alguns meses ele se sentia bem e durante outros nem tanto. Os olhos dela demonstravam bastante atenção e compreensão do problema. Após essa breve explicação ela olhou pra ele e disse: “Jonas, você é bipolar!”. E pronto. Ele saiu de lá com uma lista de 8 remédios que precisaria tomar pelo resto de toda sua vida. Estava diagnosticado com um problema mental incurável.

Foi um alívio para Jonas, para Angelina e sua mãe. Estavam explicadas todas essas emoções. Esse menino não era normal! Esses ataques de raiva, essas pequenas depressões. Estava sol e ele não ia pra praia! Essa necessidade de se embebedar. Jonas começou a tomar os remédios. Ele se sentia aliviado e ao mesmo tempo especial. Como se ele tivesse uma secreta explicação por toda sua infelicidade e a capacidade de curar todos seus problemas com algumas bolinhas. Ele tinha 18 anos e tomava 8 remédios. Nas primeiras semanas de tratamento ele se sentiu calmo como nunca antes em toda sua vida. Era como se tivesse num estado completamente diferente. Estava feliz. Receptivo. Focado. Depois foi se acostumando com aquele estado e com aquele diagnóstico, até contou pra alguns amigos, começou a se identificar com aquele traço da sua personalidade. Ele era bipolar.

Um dia sua avó teve uma de suas brilhantes ideias! Invalidar Jonas perante o estado para conseguir uma pensão! Primeiro ela entrou em contato com uma amiga advogada. Depois coletou todas as provas necessárias. Pegou os diagnósticos, as receitas de remédios, contas de analistas e, por fim, convenceu Jonas de que ele nunca ia conseguir ganhar seu dinheiro sozinho, que ele seria MALUCO de não aceitar essa pensão, que todas as pessoas do mundo gostariam de estar em seu lugar, vida fácil. Seu pai não estava dando nenhum centavo de pensão e ela não podia sustentar aquele estilo de vida sozinha. O trabalho de sua mãe quase não rendia nada.

Jonas acabou aceitando a ideia de sua avó. Já que ele era bipolar mesmo, porque não ajudar a família e ser pago por isso? Angelina o treinou perfeitamente para o dia de sua perícia. Ela ditava tudo que ele precisava falar para que achassem ele bem maluco mesmo. Fazia trejeitos, seus olhos enchiam de lágrimas (ela o incentivava a chorar se ele conseguisse). Jonas ouvia tudo bem concentrado pra não errar.

Os peritos acreditaram que Jonas era maluco mesmo. Três especialistas resolveram lhe pagar pela sua loucura. E assim essa loucura passou a sustentar sua mãe e irmã no bairro mais nobre de NF, no estilo de vida de ricos que sempre tiveram antes do divórcio. Desde então, todo ano Jonas passou a passar por essa perícia. Cada ano que passava ele ia ficando melhor.

Ele mudava de analistas e de remédios o tempo todo mas sua avó só pagava os analistas que ela escolhia. E ela só escolhia aqueles que concordavam de início com o diagnóstico que lhes dava o seu sustento. Um dia Jonas ficou sabendo de um analista muito bom! E começou a fazer análise com ele. Este era diferente dos outros, ele lhe dizia que Jonas não era bipolar, ninguém nem sabia se bipolaridade de fato existia. Era impossível dar esse diagnóstico tão rapidamente como lhe foi dado pela psicóloga especialista em adolescentes. E explicou pra Jonas que este diagnóstico era muito perigoso. Ele sustentar a sua família por causa da sua loucura era mais perigoso ainda. A mente responde ao que ela acredita ser. Jonas teve que sair deste analista porque sua avó não gostou dele.

Toda vez que Jonas questionava essa loucura, sua avó dizia pra ele que tem muita gente bipolar que vive uma vida normal. Ser bipolar é tipo usar óculos, meu netinho. Só tomar seus remedinhos que tudo ficará bem. Quando as coisas ficavam ruins mesmo, eles saiam e gastavam o dinheiro que Jonas ganhava em roupas e sapatos. Mas ele nunca tocava no dinheiro, quem administrava tudo era sua mãe, ela andava com um talão de cheques assinado por ele, cartão de crédito no seu nome, conta corrente conjunta. Ele recebia uma mesada um pouco mais alta do que a que todo adolescente deve  receber.

Quando Jonas se revoltava mesmo, elas lhe diziam que ele não era maluco, nem bipolar. Era só um jeitinho de ajudar em casa. Que ele ficasse tranquilo.

Não demorou muito pra Jonas começar a apresentar seu diagnóstico na sua vida. Começou a entrar em crises de depressão mais profundas e crises de mania intensas. E assim foi ficando cada vez melhor na perícia. Era só ele chegar lá e falar a verdade. Angelina inclusive, parou de o treinar e passou a instruí-lo a fazer exatamente isso. É só você chegar lá e contar o que está se passando com você, meu netinho.

Angelina sempre disse para Jonas que ele era a pessoa que ela mais amava nesse mundo.

Joelma

Já faz alguns anos que Joelma optou por abandonar o mundo. Se mudou para uma cabaninha aos pés dos Himalayas que encontrou no Air BnB. É uma cabana de poucos metros quadrados, o forno fica ao lado da cama, assim ela não precisa de levantar nem pra cozinhar. Ela se levanta pouco mesmo. Passa quase o tempo todo deitada, olhando pro teto, pensando no seu passado, nas suas perdas, nos seus erros e desgostos. O problema dela é que foi feliz demais.

Tudo com ela sempre foi demais. Muito intensa, signo de água com ascendente em fogo. Nunca estava satisfeita, tinha uma fome de vida. Fome de conhecimento, de experiências, de drogas, de viagens, de homens, de amigos… Tinha cinco grupos de amigos. Um só de mulheres e os outros mistos. Não podia perder nenhum evento, queria manter o contato com todas as pessoas que passavam pela sua vida. Colecionava pessoas. Mal as conhecia, já adicionava no facebook, o catálogo de sua coleção. Toda vez que entrava, a primeira coisa que fazia era passar os olhos rapidamente no seu número de amigos e ver o quanto tinha aumentado desde a última vez que se conectou. Algumas dessas pessoas eram tão importantes que ela tatuava na sua pele para eternizar. Nunca tinha perdido um amigo sem querer. Todos adoravam sua energia meio almodóvar, meio louca, meio livre, meio animada, meio tô nem aí dela. Era com ela que todos sonhavam em fazer uma viagem de mochilão. Eles diziam que ela devia ser uma companhia de viagem muito boa e isso a enchia de satisfação, era exatamente esse tipo de pessoa que ela queria ser.

Ela queria ser muitas coisas. Estava sempre mudando. Mas uma coisa que não mudava nunca era a sua vontade de ser diferente. Talvez isso tivesse a ver com o inconsciente coletivo da humanidade de culpa, talvez ela quisesse se provar diferente das mulheres da sua família, talvez quisesse se destacar e ser especial e acreditava que a diferença é o que lhe daria esse status. Ela queria ser uma pessoa muito diferente das outras e queria fazer tudo diferente, viver uma vida totalmente diferente das outras pessoas. Ela projetava essa diferença na maneira que se vestia, na maneira que falava, nos homens que namorava, nas viagens que fazia, usava um rabo de cavalo todo bagunçado para deixar claro que não se encaixava em padrão algum.

Ela construia sua personalidade copiando pequenas coisas de várias pessoas. Seu jeito de dançar com os ombros era igual o da Claudia, com os quadris iguais o da Julia e o olhar igual ao da Jéssica. Suas expressões de fala eram uma coleção de frases e sotaques que ouviu de alguém ou na televisão e achou legal. Seu estilo era o oposto da sua mãe, com o tênis que a prima usava e as meias que um ficante lhe deu de presente. Ela andava com um caderninho de notas para todos os lugares e anotava informações úteis para essa construção de personalidade idealizada. Músicas, lojas, lugares, filmes, pessoas que deveria seguir no instagram… Essas informações eram muito importantes para ela.

E ela zoava muito. Se amava loucamente, se achava exatamente tudo que ela deveria ser. Ela tinha uma confiança profunda na vida. Uma certeza absoluta que tudo ia dar certo. E assim ela entrou na faculdade de Direito. Ela não sabia muito bem o que queria fazer, foi meio na intuição, achava legal a maneira chique que os advogados se vestiam. Ela nunca questionou muito essa escolha de estudar em uma universidade, era o próximo passo natural após a escola. Queria muito se encontrar ali. Ser alguém importante, alguém bem sucedida e ser muito feliz.

Não demorou muito para se apaixonar perdidamente. Joelma tinha uma capacidade de amar enorme. Ela amava qualquer um, qualquer coisa, qualquer ideia, qualquer lugar. Era só chegar que ela estava amando. Ela achava todo mundo irado, único e especial e por isso as pessoas gostavam tanto da sua companhia. Perto dela, todos brilhavam. Mas era ela que sempre brilhava mais. Se apaixonou sem pé nem cabeça e sem nenhuma garantia. Foi assim que lhe ensinaram que o amor acontecia. “A gente não escolhe quem a gente ama.” Ele gostava dela também, especialmente de transar com ela. Ela o admirava enlouquecidamente, passava horas falando dele pra todas as amigas. Ele era tão diferente! Tão inteligente! Tão corajoso! Ela falava sobre todas as suas qualidades porque no fundo queria engolir aquelas qualidades todas pra si. Sentia que ter um homem assim ao seu lado lhe dava algum tipo de garantia de que ela também era tão diferente! Tão inteligente! Tão corajosa!

Ela arrumou o emprego dos seus sonhos! Era uma empresa americana então ela estava sempre tendo que ir à Nova Iorque para reuniões e treinamentos. Seu amor trabalhava na mesma área então eles se conectaram bastante pelo trabalho. Ela A-M-A-V-A o seu chefe. Ele era um velhinho texano desses repúblicanos meio preconceituosos que ela achava uma figura! Parecia que ele tinha saído direto de um filme. E ele também desenvolveu um afeto pela estagiária querida. Uma relação meio paternal! Como ela não falava com seu próprio pai há anos e nem sentia a mínima falta, ela acabou aceitando esse papel para o seu chefe.

Nessa época ela perdeu vários amigos porque esse amor tão intenso por esse homem e esse novo chefe que saciava um pouco sua fome de pessoas. Pela primeira vez ela focou toda sua atenção e seu amor em um lugar só. Ela tinha certeza que se casaria com ele e que aquele emprego era o seu caminho. Pensava até em largar a faculdade, já não precisava mais de um diploma. “She made it!” Essas pessoas que ela foi perdendo, ela nem percebeu. Nunca tinha valorizado seus amigos antes porque eles vinham com tanta naturalidade. Ela tinha tantos e tanta capacidade de fazer novos amigos. Seu jardim era todo florido, sem nenhum esforço. Então foi perdendo algumas flores mas tudo bem, não estava acostumada com a ideia de cultivá-lo mesmo.

Sua vida toda era uma maneira de saciar essa sua fome. E fome é sinônimo de vazio.

Derecho de Nacimiento – Natala Lafourcade

Voy a crear un canto para poder existir
Para mover la tierra a los hombres y sobrevivir
Para curar mi corazón y a la mente dejarla fluir
Para el espíritu elevar y dejarlo llegar al fin

Yo no naci
Sin causa
Yo no naci
Sin fe

Mi corazón pega fuerte
Para gritar a los que no sienten
Y así perseguir a la felicidad

Voy a crear un canto para el cielo respetar
Para mover las raíces de este campo y hacerlo brotar
Para mover las aguas y el veneno verde que hay por ahí
Para el espíritu elevar y dejarlo vivir en paz

Yo no naci
Sin causa
Yo no naci
Sin fe

Mi corazón pega fuerte
Para gritar a los que nos mienten
Y así perseguir a la felicidad
Y así perseguir a la felicidad

Es un derecho de nacimiento
Es el motor de nuestro movimiento
Porque reclamo libertad de pensamiento
Si no lo pido es porque estoy muriendo

Es un derecho de nacimiento
Comer los frutos que dejan los sueños
En una sola vos y sentimiento
Y que este grito limpie nuestro viento

Voy a crear un canto para poder exigir
Que no le quiten a los pobres lo que tanto les costó construir
Para que el oro robado no aprecie nuestro porvenir
Y a los que tienen de sobra nos les cueste tanto repartir

Voy a elevar mi canto para hacerlos despertar
A los que van dormidos por la vida sin querer mirar
Para que el trono lleve sangre lleve flores y el mal sanar
Para el espíritu elevar y dejarlo vivir en paz

Yo no naci
Sin causa
Yo no naci
Sin fe

Mi corazón pega fuerte
Para gritar a los que no sienten
y así perseguir a la felicidad

Es un derecho de nacimiento
Es el motor de nuestro movimiento
Porque reclamo libertad de pensamiento
Si no la pido es porque estoy muriendo

Es un derecho de nacimiento
Mirar los frutos que dejan los sueños
En una sola vos un sentimiento
Y que este grito limpie nuestro viento

Es un derecho de nacimiento
Es el motor de nuestro movimiento
Porque reclamo libertad de pensamiento
Si no la pido es porque estoy muriendo

Es un derecho de nacimiento
Comer los frutos que dejan los sueños
En una sola vos un sentimiento
Y que este grito limpie nuestro viento

Rebeldia e Revolução

O homem ainda não chegou ao ponto em que os governos possam ser descartados. Anarquistas como Kropotkin são contra o governo, a lei. Ele queria que isso acabasse. Eu também sou anarquista, mas de um modo completamente contrário ao de Kropotkin.

Eu quero elevar a consciência da humanidade até o ponto em que o governo se torne inútil, os tribunais fiquem vazios, ninguém seja assassinado, ninguém seja estuprado, ninguém seja torturado ou molestado.

Vê a diferença? A ênfase de Kropotkin é acabar com os governos. Minha ênfase é elevar a consciência dos seres humanos até o ponto em que os governos passem a ser, espontaneamente, inúteis; até o ponto em que os tribunais comecem a fechar, a polícia comece a desaparecer porque não há trabalho, e é dito aos juízes, “Achem outro trabalho”.

Sou um anarquista de uma outra dimensão muito diferente.Primeiro, deixe que as pessoas se preparem, e então os governos desaparecerão por conta própria.

Não sou a favor de acabar com os governos; eles estão preenchendo uma certa necessidade. O homem é tão bárbaro, tão vil, que, se não fosse impedido pela força, toda a sociedade seria um caos.

Não sou a favor do caos. Quero que a sociedade humana se torne um todo harmonioso, uma grande comunidade em todo o planeta: pessoas meditando, pessoas sem culpa, pessoas de grande serenidade, de grande silêncio; pessoas rejubilando-se, dançando, cantando; pessoas que não querem competir com ninguém; pessoas que descartaram a própria ideia de que são especiais e têm de provar isso tornando-se o presidente da república; pessoas que não sofrem mais de complexo de inferioridade. Então ninguém quer ser superior, ninguém ostenta grandeza.

Os governos evaporarão como gotas de orvalho sob o sol da manhã. Mas essa é uma história totalmente diferente, um enfoque totalmente diferente. Até que chegue esse momento, os governos são necessários.

É muito simples. Se você está doente, precisa de remédios. Um anarquista como Kropotkin quer destruir os remédios. Eu quero que você seja tão saudável que não precise de remédios.

Você automaticamente os jogará fora — o que fará com todos esses remédios? Eles são absolutamente inúteis, na verdade, perigosos; a maioria dos remédios é veneno. Para que você continuará a acumulá-los?

Veja a diferença na ênfase. Eu não sou contra os remédios, sou contra a doença dos seres humanos que faz com que os remédios sejam necessários. Eu gostaria de ver um ser humano mais saudável — o que é possível com a engenharia genética —, um ser humano sem possibilidade de ficar doente porque nós o teríamos programado, desde o nascimento, de modo que ele simplesmente não possa adoecer, teríamos feito arranjos no seu corpo para que ele combata qualquer doença.

Certamente a medicina desapareceria, as farmácias desapareceriam, os médicos desapareceriam, as faculdades de medicina fechariam as portas. Mas eu não sou contra eles! Essa será simplesmente uma conseqüência de uma humanidade saudável.

Eu quero um só mundo, uma só língua, uma só religiosidade, uma só humanidade — e, quando a humanidade tiverrealmente amadurecido, um só governo.

O governo não é algo do qual possamos nos gabar. É um insulto. A existência dele é uma indicação de que você ainda é bárbaro, de que ainda não existe uma civilização; do contrário, para que seria preciso um governo para mandar em você?

Se todos os crimes desaparecerem, se todos os medos de que outras pessoas possam explorar você, assassinar você, desaparecerem, o que você fará com toda essa burocraciado governo?

Você não pode deixar que ele continue, pois ele é um fardo para a economia da nação, um grande fardo, e vai ficar cada vez maior.

Osho, em “Liberdade: A Coragem de Ser Você Mesmo”

Camelos e Banheiras

O leão você tem de se tornar por si mesmo, lembre-se. Se não decidir se tornar um leão, você nunca se tornará um. Esse risco tem de ser tomado pelo indivíduo. Trata-se de um jogo de azar. E é muito perigoso também, pois ao virar um leão, você passa a incomodar todos os camelos à sua volta, e os camelos são animais pacíficos; eles estão sempre dispostos a fazer concessões. Eles não querem ser perturbados, não querem nada novo acontecendo neste mundo, pois tudo o que é novo perturba. Eles são contra os revolucionários e os rebeldes; perceba, nada de coisas grandiosas – nada de Sócrates e de Cristo; eles causam grandes revoluções – os camelos têm receio de coisas tão pequenas que você ficará surpreso.

Eu ouvi…

Em dezembro de 1842, Adam Thompson, de Cincinnati, encheu a primeira banheira dos Estados Unidos. A notícia a respeito da banheira do sr. Thompson logo se espalhou. Os jornais diziam que a novidade iria acabar com a simplicidade democrática da república. Veja só, uma banheira iria arruinar a integridade da república democrática. Os médicos previam reumatismos, inflamações nos pulmões, etc., etc. Os mais sábios concordavam que banhos na época do inverno enfraqueceriam a população sadia. A Filadélfia, o berço da liberdade, tentou proibir os banhos de banheira de 1º de novembro até 1º de março; em Boston, o banho de banheira passou a ser permitido apenas com prescrição médica; em Hartford, Providence, Wilmington e em outras cidades, tentou-se reprimir o hábito de tomar banho de banheira impondo-se pesadas taxas de água. No estado da Virgínia, o hábito de tomar banho de banheira levou um golpe com a decretação de uma taxa de trinta dólares para cada banheira trazida para o estado. Por volta de 1922, contudo, 889 mil banheiras eram produzidas anualmente.

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Os camelos são simplesmente contra tudo o que é novo, não importa o quê. Pode ser apenas uma banheira, mas eles racionalizarão o seu antagonismo.

Osho, em “Liberdade – A Coragem de Ser Você Mesmo”

Tecnoxamanismo não é isso!

Oito meses após o I Festival Internacional de Tecnoxamanismo, me lembro dessa época com certa nostalgia da minha ingenuidade. Foram 6 meses de programas semanais debatendo e desenvolvendo o conceito que chegou na minha vida quase morto. No primeiro programa, a ideia era mudar o nome totalmente para “tecnoficção” ou algo do gênero. Mas essa palavra mágica “T-E-C-N-O-X-A-M-A-N-I-S-M-O” que tem a capacidade de levantar sobrancelhas e borbulhar as caldeiras de Dionísio não poderia ser desconsiderada assim, sem uma passagem pelo incentivo energético da Penny. O momento do mundo é tecnoxamanismo! Essa palavra resume a disputa evolucionária da humanidade, abre as portas da Nova Era. Não descartemos tão rápido.

Nos amamos por 6 meses. Fazíamos sexo mental toda quinta-feira às três da tarde na Rádio Interferência, nossos olhos vidrados uma na outra, jogávamos ideias de lá pra cá, rebatendo, contestando, nos complementando em uma dança criativa que ficava mais tensa e afiada conforme nossos ouvintes aumentavam, a rede se movimentava e o conceito começava a entusiasmar e horrorizar por aí. Tínhamos plateia regular com fome de interação na rádio, convidados especiais se juntavam ao caldeirão referencial de vez em quando. A maneira que criávamos no meio daquele falatório ininterrupto era absolutamente livre, não linear, egoísta e revolucionária por acontecer dentro das paredes acadêmicas da UFRJ onde os formalismos são exaltados e nada é válido sem nota no rodapé. Mudávamos vidas semanalmente.

Conforme o conceito tomava forma e criava limites em sua aura, fomos nos definindo melhor também e começando a perceber as diferenças de expectativas em relação a ele mas seguíamos na energia da complementação, diferenças que promovem o crescimento pelo debate. Não havia necessidade de concordar em nada, era só criação, canalização de ideias aleatórias em um misto de referências de ponta e um pouco de porno-terrorismo para temperar.

Durante o festival porém minhas expectativas alucinadas se fizeram mais claras e, pra variar, me decepcionei. Eu acreditava que debatíamos o futuro. Mas não era bem isso. Até agora não sei o que era na verdade. Pra quê tudo aquilo? Debates, rádio livre, hacklab, hardware livre, atividades com os Pataxós, ritual, geodésica, ayauaska, videomaking, luzes brilhantes, terreiro eletrônico, cozinha vegana, ônibus hacker, performances… Dentre os presentes: DJs, vídeo makers, hackers, artistas, malabaristas, cozinheiros, ativistas, quilombolas, indígenas, pensadores, acadêmicos, místicos, feministas, permacultores, atores, ambientalistas, performáticos, palhaços e travestis. Se o novo não sai de um festival tal que se propõe a debater a relação entre magia e tecnologia à partir de uma perspectiva de dominação tecnológica do mundo e de mentes em regime de imersão com todos os estímulos listados acima, então não sei de onde sai.

Acabou o festival e não saiu. Ai como eu estou cansada dessa energia de frustração na minha vida! Há 4 anos que não fiz nada da vida a não ser buscar de onde vai sair esse movimento verdadeiro de mudança e criação do novo. E é sempre a mesma coisa. Tudo começa lindo, cheio de amor e parcerias. Aos poucos os egos crescem, as pessoas revelam seu lado de desinteresse pelo mundo e priorizam seu prazer e finanças acima de tudo. Durante o festival a galera ia pra praia, virava noite tomando quetamina e fazendo orgias. Taí um desafio: zumbis que querem repensar tecnologia e salvar os indígenas. Poucas pessoas compartilharam conhecimento abertamente. O misticismo foi decoração. Todo mundo atrasado pra tudo. Descaso com o que fazíamos ali. Era tudo diversão intelectual punk? Estava eu no meio de gênios alternativos entediados?

Os meses que se seguiram? Ela sumiu. Foi ficar famosa. Colher sozinha todos os frutos plantados coletivamente. Deu nosso programa por encerrado. “É uma obra.” E foi viajar o mundo sentando em mesas e brilhando em aldeias indígenas.

Até quando irão me decepcionar os líderes? Eu não suporto essa coletividade sem liderança. Essa horizontalidade irresponsável e demorada. Esse consenso bate-boca que não consegue implementar. Essa falta de humildade de ouvir o que tem mais experiência. Esse ego anarquista do ninguém manda em mim. Eu quero organização, confiança e admiração. Ordem, objetivo e meta. Doação voluntária de poder e liberdade de tomá-lo de volta a qualquer momento. Escolha. Transparência. Intimidade. Raça. “Um dia quero ser que nem ele”.

Mas é cada um pior que o outro. Puta merda. Não é possível ser liderado por quem não se admira. Esta muito difícil para uma pessoa sensível admirar alguém nesse mundo à partir do momento que a percepção do outro vem da necessidade e motivação por trás. Mas ela eu admirava demais. Um encantamento carente e barato disposto a abrir mão da perfeição em troca de tamanha gratidão pelo mundo a mim aberto. Pela oportunidade de entrar em contato com aquela energia, aquele fogo, aquela mente, aquela arte. Finalmente aprendi que não se pode abrir mão. Na busca pelo movimento verdadeiro, somente um líder absolutamente verdadeiro pode ser seguido. Se não é energia jogava no lixo. Nada pior do que o brilho da vaidade no olho daquele que te guia.

[NOTE TO SELF] Lembre-se sempre: um líder verdadeiro não se assusta quando você cresce, ele se fortalece porque sabe que você é um reflexo de sua liderança. Um líder verdadeiro quer é que você cresça tanto que tome seu lugar e sua missão evolua. Ele te incentiva, SEMPRE. Um líder falso não te deixa crescer, quer te manter onde esta porque tem medo de perder seu pódio de número um. Tem medo de perder a admiração do outro. Tem medo de perder o controle. Mas quem tem medo de perder o controle não está no controle. Quem deseja manter as coisas como estão para se garantir é o [MST] que vai manter você em um movimento medíocre ganhando um salário fixo para fazer um role político qualquer que vai mudar uma linha em um documento em 10 anos (ou uns 10 mil reais em um orçamento blá). Vai te fazer umas críticas pequenas, te dizer que você não está pronto, que precisa de mais um diploma, mais uma especialização, mais uma participação em uma peça audiovisual. Um falso líder vai se importar com coisas mínimas como logos, fanpages, administração de redes sociais, coordenações e nomes para mesas. Qualquer micro ilusão que tire o olhar da macro situação histórico-planetária que vivemos. Para te manter sob seu controle, um falso líder te oferece um pouquinho mais de poder do que os outros só pra você saber que você é o preferido. Um falso líder explora seu trabalho em troca de promessas possibilidades.

E eis que o conceito se tornou aquilo que era diferença antes. Hoje em dia, Tecnoxamanismo é uma ideia extremamente materialista, voltada para a reprodução criativa de rituais e misticismo através de luzes pisca-pisca e performances trans com trajes chocantes (capas, silicone, fitas, palha, chips e durepox). Vem inovando a estética hacklabista e, talvez, incentivando a religião da tecnologia, adoração do silício e extropismo. Os rituais são reproduções bollywoodanas de cenas pagãs trocando as ervas pelas máquinas. O contato com os espíritos é simbólico através do noise, ruídos baixados no PirateBay e tocados no Itunes. Apropia-se de qualquer termo fantasioso e ressignifica-o com a linguagem da cibercultura criando novos personagens e arquétipos vazios de espírito mas suficientemente recheado para publicar-se mais um artigo ou sentar-se em mais uma mesa. Quem sabe dar uma passada na Dinamarca.

A parte do xamanismo conectou-se totalmente com a causa indígena, conectando a cultura hacklab software livre com a necessidade de educação tecnológica nas aldeias. Além de fazer um ativismo pelos conhecimentos ancestrais indígenas enquanto alta tecnologia ambiental (o que eu acho bem legal). Mas onde estão os verdadeiros xamãs no Brasil? Os poucos legítimos que ainda existem estão reservados no interior da floresta, não estão nem sonhando com tecnoxamanismo e, pessoalmente, acho bom que fiquem bem longe de todas essas máquinas mesmo. Um ou outro xamã evangélico tira umas fotos e endossa o #TCNXMNSM mas pra onde foi todo aquele debate místico pesado que fazíamos? Pra mim, quando falávamos de xamanismo, falávamos de magia total. O xamanismo indígena sendo um deles apenas. Falávamos de astrologia, ufologia, tarot, magia do caos, umbanda, espiritismo, leitura de aura, fogo sagrado, clarividência… O que aconteceu com a minha tão amada magia open source? Eu sempre defendi que todo ser humano é xamã ou pode se desenvolver bastante nessa vida para ser na próxima. Que era hora de abrir novas potencialidades humanas na disputa evolucionária que vivemos (e perdemos) agora: homem x máquina. Que era magia versus computador na veia. Todo meu respeito ao povo indígena que amo e admiro demais mas tecnoxamanismo é mais que isso. É xamanismo urbano, siberiano, kardecista… É o corpo humano funcionando em seu pleno potencial. É o sexto sentido a flor da pele. Conexão animal com o coqueiro da praia de Ipanema. Ecovilas. Permacultura. Meditação das Rosas. Festivais de Trance. Bitcoin. E como tudo isso se conecta com os novos tempos, com as novas máquinas? Máquinas artesanais. Máquinas locais. Máquinas que manipulam energia. DJs xamãs. Telepatia.

E agora é isso: Tecnoxamanismo, essa palavra tão poderosa, capaz de fazer com que pessoas viagem 20 horas de ônibus só para descobrir o que é, tomado por um ego acadêmico. Reduzido a imagens projetadas em tecidos brilhantes e debates/artigos acadêmicos rebuscados e inovadores que se apropriam de termos indígenas e mitológicos mas que quase ninguém vê nem lê. Sendo usado como pretexto de carona pra dar uma volta pelo mundo e escada na carreira de um única pessoa. Esquecido pela rede que, decepcionada, deixou de se comunicar.

Muito feio. Me senti usada. E jogada fora. Mas não é a primeira pessoa a ignorar o valor da minha energia investida no seu talento. Jurei que seria a última.

Mas sou muito grata. Se não fosse pelo tecno, o xamanismo nunca teria entrado na minha vida. Sigo vivendo a minha diferença de conceito. Estudando. Aqueles meses de debate e criação finalizados com aquele escândalo de festival serviram para definir grande parte do que eu quero fazer na minha vida. Me abriu os olhos para o estado tecnológico futurista absolutamente apocalíptico que se aproxima. Aprendi demais. Não só sobre a tecnomagia mas também sobre a promiscuidade travestida de feminismo e o feminismo que faz sentido pra mim. Aprendi muito sobre loucura, sobre autenticidade e vaidade. Mas, acima de tudo, descobri que OS ROBÔS ESTÃO CHEGANDO e não temos tempo a esperar. Em 10 anos eles estarão entre nós. E nós precisamos ter bons motivos para continuar vivos. Precisamos fazer coisas que eles jamais saberão fazer. Precisamos relembrar a magia. Rápido.

Uma coisa é certa: eu amo essa palavra. E minha história com ela está apenas começando.

Cumbre de los Pueblos… De novo.

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Hoje começa a Cúpula dos Povos em Lima. A Cúpula dos Povos é um grande evento realizado pelos movimentos sociais internacionais durante esses períodos de conferência e falácia das Nações Unidas. Durante o evento, organizações de esquerda, mulheres, indígenas e outras minorias fazem exposições, debates, mesas e workshops sobre suas lutas. É uma agenda cheia de opções para quem quer ver a realidade da situação climática tão ocultada pelo discurso apaziguador e tecnicista dos negociadores e exploradores da natureza que debatem mais fundos e trâmites econômicos como propostas de redução de danos e emissões para solucionar a crise climática global.

A cúpula é organizada por uma comissão política que é uma articulação entre diversas organizações, redes e movimentos. Eu acompanhei essa comissão durante a Rio+20, chamávamos de Comitê Facilitador da Sociedade Civil para Cúpula dos Povos na Rio+20. E foi uma loucura. Não sei como foi essa organização aqui no Peru, mas no Brasil foi um dos ambientes mais hostis dos quais já participei na minha vida, a rede de movimentos que deveria estar afinada para realizar o principal evento de contestação da cidade não conseguia dialogar entre si, era muita política, muita negociação, muita diferença e, no final das contas, essa desorganização política se refletiu no próprio evento. A Cúpula dos Povos na Rio+20 não tinha sequer programa impresso, ninguém sabia onde ficavam as atividades, o hacklab do movimento software livre foi todo assaltado e muitos equipamentos valiosos levados, além de ter transmitido ao público a impressão de ser uma grande feira de artesanato.

Não foi tudo um desastre. Muitos eventos inspiradores aconteceram, a metodologia de construção da declaração final foi muito bem pensada, muitos movimentos conseguiram se alinhar e ter suas vozes e pautas unidas em um único documento. Muitas alternativas foram expostas e mentes libertas de antigos paradigmas. Alguns ativistas descreveram a cúpula como “um grande parque de diversões políticas” de tanto que conversaram, trocaram, sentiram e aprenderam ali.

Mas… de que serviu todo aquele trabalho? Aquele ano e meio de reuniões, debate, disputa, estresse e decepção? Algumas pessoas descobriram novos caminhos, outras pessoas criaram novos projetos, alguns jovens se descobriram ativistas… Mas seguimos em direção ao apocalipse. Dois anos depois, aqui estamos, mais uma vez na exata mesma dinâmica, só que um pouco mais simples. Aqui são três dias de evento e os eventos não são tão variados como eram na Rio+20. Mas são os mesmos…

http://cumbrepuebloscop20.org/agenda/

Será que ninguém mais percebe esse ciclo de repetição idêntico? Estamos presos nesse modus operandi que é um grilhão mental sendo arrastado pelas energias de produção coletiva de todos aqui. Mais uma conferência da ONU com ONGs enormes em seus side events e workshops internos, mais uma Cúpula dos Povos com seus seminários e debates de exposição e constrangimento dos que estão do lado de dentro. Mais 15 dias de reuniões ininterruptas para pensar uma única marcha, algumas hastags, alguns abaixo assinados, estratégias de alguma coisa, pressão de outra coisa…

Mas o que estamos fazendo com toda essa dinâmica política é dando poder a este processo! É dando importância e relevância para estes negociadores e lobistas que já estão tão profundamente tomados por seus egos e vício em poder que talvez não estejam nem mais vivos. Talvez não tenham alma alguma dentro deles (estou falando literalmente). Estamos tentando convencer alguns zumbis de que precisamos respirar e beber água para viver. Como podemos esperar que zumbis vão compreender a linguagem da vida? E estamos os alimentando energéticamente com toda essa energia produtiva sendo investida nisso. São vampiros que precisam destas conferências e destas mobilizações para sobreviver, consomem esta energia de jovens guerreiros que acreditam que estão sendo úteis para alguma coisa. Que se forem a mais uma reunião vão encontrar a solução, que se saírem pelas ruas pegando mais cem assinaturas alguma coisa vai acontecer… Não vai. Ano que vem será a mesma coisa. Mas com mais energia para zumbis ainda maiores. Ano que vem estamos falando te metas do milênio em Paris. Que piada… Metas do milênio…

Precisamos começar a compreender as dinâmicas invisíveis que acontecem por trás dos processos racionais da matéria. Observar as marés de energias que são movimentadas com toda essa atividade e valorizar isso. Dar valor a nossa energia, dar valor aos nossos sonhos. Parar de aceitar essa receita de ativismo que não dá em nada.

E lá vamos nós… Fazer tudo de novo. Já tem reunião no Pirate Pad do Children and Youth Caucus da sociedade civil para Paris rolando a cada 15 dias. E pessoas preocupadas com esse processo, dando valor a algo que é uma miragem. Uma ilusão da matéria.

Dois anos depois…

Em Dezembro de 2011 fui à COP (Conference of the Parts / UNFCCC – United Nations Conference on Climate Change) em Durban na Africa do Sul. Fazia um ano que eu estava profundamente envolvida com a organização e mobilização de jovens para Rio+20 e fui através de uma organização internacional que forma jovens para incidirem na conferência. Eu não tinha ideia do que me esperava mas minhas expectativas eram positivas, eu estava ansiosa para vivenciar aquilo que eu vinha estudando e discursando há tanto tempo. Eu acreditava nesse processo como estratégia de mudança de paradigma, gestão dos recursos naturais globais e controle das corporações que estão devastando o planeta como se fosse infinito e descartável.

Foi uma das, senão A, maiores decepções de toda minha vida. Quando cheguei na conferência, percebi que estava em um grande teatro, um grande cenário de uma encenação de preocupação com a natureza e a humanidade. Dos governos isso já era esperado, estão absolutamente alinhados com os verdadeiros donos do mundo, as transnacionais. Mas o meu grande choque foram as ONGS. Eu não compreendia em quê aquela grande feira de demonstração de projetos e atuação e troca de cartões de visita estava contribuindo para a causa.

O espaço da conferência se divide em três arenas. Uma das negociações onde somente as delegações oficiais e negociadores podem transitar, outras das ONGS que é essa grande feira de exposição e salas de eventos múltiplos, um grande caderno de programação auxilia com descrições e locais mas além disso murais são preenchidos ao longo dos 15 dias de conferência com novos eventos criados de acordo com necessidades. Não há um segundo sequer de tempo livre, são mesas, debates, apresentações, reuniões, assembleias infinitas. Estas duas arenas tem entrada restrita para aqueles que tem credenciamento (delegados, ONGs e jornalistas). A terceira arena é a dos empresários, esta aberta ao público que transita pela rua ou que tem curiosidade para compreender o que se passa em sua cidade. Quando entramos nesta arena, vemos produtos de baixo gasto de carbono, água limpa… Tudo mercantilização da natureza e da vida disfarçada de amigo da mãe terra. E muita desinformação.

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Dentro da conferência, muitos dos maiores ativistas do mundo ocupados com blogs e reuniões. Grandes organizações ocupadas e divididas entre milhares de eventos e networking. Todos muito bem comportados, valorizando sua relação com as Nações Unidas que financia muitos de seus projetos ao longo do ano. Não se pode nem distribuir um flyer ali dentro. O ato de esticar o braço para entregar algum papel informativo ali pode causar a sua expulsão do território internacional. E tudo bem. São 15 dias em que se acompanham as negociações, se debate pelo corredor, produz-se conteúdo jornalístico, abaixo assinados tipo Avaaz e os jovens ainda pensam em algumas ações que podem realizar pela cidade e estratégias de mobilização para a grande marcha tradicional que acontece mais pro final. Alguns representantes e grupos conseguem breves reuniões com negociadores e colocam alguma pressão para um afrouxamento da irresponsabilidade e da cegueira. No último dia faz-se uma ação qualquer lá dentro em revolta com os resultados sempre insatisfatórios considerando as mais baixas das expectativas e aí muitos são expulsos da conferência. No último dia.

Eu nem fui neste último dia. Tive alguns problemas com a minha organização porque, no início da segunda semana, peguei 700 adesivos de uma campanha que estava sendo feita sorrateiramente lá dentro entre os próprios ativistas: “I <3 KP” (Eu amo Protocolo de Kyoto) e colei por toda a conferência, por todos os lados, atrás das câmeras da grande mídia, pedia para negociadores colarem onde eu não alcançava, fechava armários dos países que estavam dificultando ou sequer debatendo o protocolo… Eventualmente a polícia me pegou. Me levou ao secretariado e o chefe da organização veio para proteger sua relação com as Nações Unidas. Fui bastante repreendida. Não fui expulsa mas depois daquilo percebi que ali dentro, independente se é delegado, ONG ou empresário, estão todos articulados com aquele modus operandi que é confortável e seguro. Cada um finge que faz a sua parte e no final não passa de uma formalidade para não dizer que a humanidade está cagando para o ar que respira, a água que bebe e o planeta que habita.

A verdade é que estão todos muito confortáveis com esse universo das conferências e do movimento climático ambiental. Os governos e as corporações com seus modos de manipular e restringir a atuação além de investimentos mínimos em áreas e projetos pouco relevantes e as organizações e ativistas dependentes destes processos para simplesmente ter o que fazer. Como não temos nenhuma proposta melhor para salvar a natureza e sentimos uma ânsia por fazer alguma coisa, acabamos incidindo nestes processos seja para participar das negociações enquanto sociedade civil, seja para contestá-los. E é a mesma coisa: reuniões, encontros, cúpulas, comunicação, marchas, campanhas, design, mobilização e artivismo. Algumas ações de sabotagem aqui e ali.

Dois anos depois retorno para um cenário novo. Lima, Peru. COP20. Casa de Convergência TierrActiva, um espaço que se propõe a ser uma zona de convívio comunitário entre diversas pessoas e organizações, além de trazer um novo elemento para a luta: a transformação interna através de práticas espirituais e a explanação de alternativas e outras possibilidades de realidade. A proposta é muito boa mas a prática é a perfeita reprodução do que se vê no espaço oficial. Organizações que estão acostumadas a um modus operandis de reuniões, articulações, midiativismo, mobilização, marcha… E não tem a menor abertura para qualquer dinâmica de criação. Acredita-se, por algum motivo não comprovado, que esse é o caminho da mudança. Que um dia uma marcha vai mudar alguma coisa, que mais uma reunião vai mudar alguma coisa, que mais um debate ou mais uma crítica ao governo vai salvar o planeta e a humanidade. Um monte de ego sentado em círculo, pessoas que tem seus salários pagos simplesmente porque a crise climática existe debatendo logos e nomes para coordenação de grupos de trabalho.

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E fala-se sem parar sobre uma nova narrativa, sobre uma nova estratégia mas na praxis se faz o mesmo de sempre porque é seguro e confortável, porque assim que se aprendeu a fazer, assim que é feito deste 1945 e repudia-se qualquer proposta de fazer diferente. São 10 reuniões por dia, aceleradas para que se possa ter mais tempo livre para estar respondendo e-mails e combinando mais reuniões. Qualquer tentativa de conexão e profundidade é considerada perda de tempo, a mentalidade da produtividade capitalista se reproduz também nos círculos dos que querem contestá-lo o tempo todo. A superficialidade, a formalidade, a produtividade glorificada.

Yoga, meditação, práticas energéticas e rituais servem para decorar. Para trazer um momento de leveza e sacar unas fotos. É um momento de respirar para que as energias possam ser recarregadas e se possa voltar a fazer o mesmo. Tudo considerado muito bonitinho. Mas em nenhum momento visto como o caminho, como a solução. Como a tal nova narrativa.

É deprimente. Essa casa é o ápice do ativismo climático no mundo hoje. Por aqui transitam as maiores organizações, os maiores ativistas tão ocupados com suas reuniões e conversas de corredor, com as articulações de seus projetos que não tem um segundo para imaginar-se em outro cenário.

Eu gostaria de sentar para uma reunião de criação em 48 horas. Pessoas se fecham em uma sala e só saem de lá com uma ideia nova. Algo que nunca tenha sido feito. Gostaria de entrar em uma reunião não verbal. Gostaria de sentar em uma geodésica com artivistas e tomar mescalina antes de olhar para as cartolinas em branco na parede. Gostaria de sair daqui com um grupo ativista com o objetivo de montar uma ecovila/hacklab e estas pessoas vão morar juntas durante um ano informando sua enorme rede de todas as ideias e propostas de um novo movimento que surgem durante este convívio. Mas nada disso faz nenhum sentido para ninguém. O que faz sentido é mais um abaixo assinado. Mais uma reunião com negociadores. Mais uma fala em uma reunião. Mais um cartão de visita.

Estamos perdidos. Acho que precisamos de uma reunião para articular essa ideia.