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O escândalo da grade aberta

Essas últimas duas semanas foram agitadas na Rádio Interferência. No início do semestre, debates sobre a abertura da grade para o remanejamento de horários e entrada de novos programadores extrapolaram todo o bom senso e culminaram no afastamento de alguns antigos programadores da rádio que não escutam o coletivo, não abrem mão de seus sonhos privados e utopias.

A grade da Rádio é aberta o ano todo. Ela fica pendurada no mural da rádio para que qualquer um possa chegar a qualquer momento e escolher um horário livre para fazer um programa sobre qualquer coisa. No início de cada semestre, os programadores antigos se unem em uma reunião de grade para remanejar seus horários de acordo com a nova rotina de estudos e trabalho. A grade segue aberta como sempre mas horários são negociados entre pessoas do coletivo de acordo com suas necessidades.

Este também é o período de entrada dos calouros e, sendo a rádio um espaço de formação política natural acarretado pela incessante troca de informações e visões, consideramos importantíssima a entrada de programadores mais jovens que trazem a renovação e que garantirão a manutenção da rádio no futuro. Sem medo de passar o bastão. Calouros são muito bem-vindos!

Agora, de bem vindos para louvados são outros quinhentos.

O debate começou porque o ano letivo da UFRJ começou uma semana antes da entrada dos calouros por causa de uma confusão burocrática federal qualquer. Ou seja, os calouros só entraram na faculdade uma semana após o retorno dos veteranos. Nesta primeira semana (sem os calouros em campus), fez-se a reunião de grade da rádio e optamos por abrir a grade para remanejamento antes da entrada dos calouros. Afinal, programadores antigos que se dedicam aos seus programas e às dinâmicas de ação do coletivo (reuniões, produção de festas, oficinas, transmissão das manifestações, manutenção da aparelhagem, etc.) tem direito a escolher seu horário antes dos novos. Ou não?

Essa atitude foi considerada por alguns como a instituição de privilégios e hierarquias na rádio. Por causa de uma visão extremamente utópica de que todos devem ser iguais perante a Deus e a rádio, defendeu-se que a grade somente poderia ser aberta quando os calouros estivessem em campus. Rasgou-se então a grade da primeira semana e aguardamos a entrada dos calouros na semana seguinte. Mesmo sem que todo mundo concordasse com essa necessidade de igualdade com jovens de 18 anos, recém saídos do colégio que chegam na faculdade com seus hormônios a flor da pele e só querem saber de zuar em sua maioria, salvo algumas exceções obviamente.

Quantidade ou qualidade?

Na segunda semana então, a Rádio participou do ECOmeço, semana de boas vindas aos calouros de comunicação em que acontecem diversos debates e oficinas. Participamos de mesas sobre comunicação, ativismo e democratização da mídia e chegamos até a passar uma parte do nosso documentário para os recém chegados comunicadores. A rádio foi anunciada e os calouros que optaram por participar dessas atividades, normalmente os mais conscientes e interessados, tomaram conhecimento da existência da rádio. À partir daí, qualquer calouro (pessoa, anjo ou animal) pode se dirigir até o prédio do DCE Mário Prata, chegar na rádio, sentar, trocar uma ideia e ter acesso ilimitado aos múltiplos horários livres da grade.

Mesmo assim, o debate interno seguiu porque algumas pessoas não ficaram satisfeitas com essa divulgação. Insistiu-se que se não divulgássemos a rádio por todos os quatro cantos da UFRJ, passando em salas, colando cartazes e arrastando calouros pelo braço até a rádio, não estaríamos sendo justos e igualitários.

Eu me pergunto desde quando precisamos divulgar a rádio para que as pessoas certas cheguem lá? A Rádio Interferência existe há 30 anos, ela se autogestiona, morre e renasce das cinzas em ciclos naturais. A rádio é um portal que atrai pessoas que vibram em frequências extremamente diferentes. Ano passado, no processo de renovação, pessoas mais diversas foram aparecendo, frequentando reuniões, conhecendo o coletivo pelos motivos mais aleatórios. É um processo natural. Ninguém precisou receber um flyer.

Parece que esquece-se que somos um coletivo anarquista, caótico e que nossa prática é ilegal. Não somos a MTV e nem a BandNews pra ficar fazendo planejamento de marketing e divulgação colorida pelos corredores da UFRJ. Não somos rádio universitária e nem comunitária, somos uma rádio livre, underground e alternativa. Uma deep rádio.

Insiste-se nessa progressiva institucionalização da rádio que começou por motivos de segurança e garantia do apoio do reitor da UFRJ às rádios Interferência e Pulga (IFCS). Depois começaram as negociações com a diretora da escola de comunicação para um apoio durante a Semana de Mídia Livre. Seguimos para reunião com o sub-prefeito e troca de telefones para possíveis emergências. Agora já estamos apresentando documentos e aguardando pacientemente o diálogo oficial com a XXX para a instalação da nossa antena. Até reunião de condomínio com DCE e APG para debater o uso da sede do DCE já está rolando. Sem contar a nota no jornal da ANEL nos desqualificando enquanto produtores de cultura daquele espaço. De onde vem essa ânsia de se institucionalizar? De participar do sistema e se render às suas burocracias ridículas? É necessidade ou vaidade? Necessidade de reconhecimento? Ou de sobrevivência?

Mas voltando ao debate da grade, acho muito óbvio que as hierarquias de conhecimento existem. Não posso mais continuar nessa hipocrisia de fingir que não existem lideranças que são definidas por grau de dedicação e colaboração com o coletivo. E, sinceramente, não vejo problema nisso. Não acho que um calouro deve ser colocado no mesmo nível de um programador que está na rádio há 5 anos e colabora com toda a construção e pensamento do movimento e do espaço. Esse cara merece escolher o horário dele primeiro! Como acontece no reino animal, em âmbito familiar e em diversas dinâmicas naturais do planeta, existe uma cadeia de importância natural entre as pessoas, anjos e animais. Isso não significa que os do início da cadeia de importância nunca subirão e nem que determinadas lideranças não deixarão de influenciar ao longo do tempo. É um processo natural de constante mudança e renovação que existe inevitavelmente.

A hierarquia que deve ser evitada é aquela que dá poder a determinadas entidades por causa de sobrenome, conta bancária, influência política, bairro onde vive, roupa que usa, grupo que frequenta e por aí vai. Mas negar esse tipo de hierarquia não tem que ser negar TODO tipo de hierarquia. A hierarquia do conhecimento existe e pode ser muito produtiva e sempre circular. Negá-la é dar abertura para lideranças irresponsáveis que influenciam sem jamais admitir que o fazem. Fingem que não sabem de sua relevância para o grupo e caso algo dê errado, não assumem suas ideias. É extremamente prejudicial à organização coletiva. Time consuming.

Que venham os calouros certos. Os que são movidos pela curiosidade e desejo de participar e resignificar a comunicação. A grade está aberta, pendurada na parede. Eles serão todos acolhidos e, aos poucos, irão se familiarizar com nossas práticas e influenciá-las também. Espera-se deles o reconhecimento do trabalho dos mais experientes, vontade de aprender e a criativa inovação da juventude. Sem crise.

Murro em ponta de faca

O mais chocante dessa história é que mesmo quando confrontado com todos os argumentos de diversas pessoas, o tal programador seguiu intransigente nas suas ideias de igualdade generalizada. Passou a desqualificar o coletivo, a entrar em conflito com determinadas pessoas criando histórias de perseguição e paranoia com o grupo de mulheres da rádio.

Programador este de comportamento machista, que chegou a acusar as mulheres da rádio de não quererem novas calouras por medo de competição e ciúmes. Como se nós não pudéssemos ter ideologias divergentes além de mero piti feminino.

Depois de incansáveis horas de debate, o programador (ariano obviamente) resolveu-se superior a coletividade e decidiu largar a rádio muito publicamente. Chegando a um ponto crítico em que pessoas praticamente o pediram para que largasse logo e nos deixasse em paz.

Como é triste a realidade de que algumas pessoas simplesmente não sabem ouvir. Recusam-se a ter a humildade de flexibilizar suas ideias em prol de um objetivo maior, de longo prazo, de luta pela democratização da comunicação e resignificação midiática. Aí não fica a dúvida, é a pura vaidade individualista.

Conclusão irrelevante

No fim das contas, a grade está aberta e os programadores estão colocando seus horários a lápis para possibilitar uma conversa com calouros que queiram horários já tomados. O que já acho uma farsa porque é óbvio que nenhum calouro em sã consciência vai se importar de pegar um horário entre os inúmeros que estão vagos e preferir entrar em conflito com um programador antigo… Mas tudo bem. A intenção vale.

Ninguém do coletivo está a fim de dar seguimento ao plano megalomaníaco de divulgação e explanação então ninguém o fará. Se alguém quiser fazer, fique a vontade mas sem ficar fazendo exigências, por favor. É livre.

Os calouros estão chegando aos poucos. E o tal programador se foi casado com sua ideia.

HIERARQUIA: A MATRIX REALMENTE EXISTENTE

PRESENTAÇÃO | DE REPENTE VOCÊ VÊ A MATRIX

DE REPENTE UMA VENDA CAI DOS SEUS OLHOS e você vê: A Matrix. E você a vê em todo lugar: em casa, na escola, na igreja, na empresa, no comércio, em uma partida de futebol, no trânsito, nos locais de atendimento público, nas mídias sociais…

Para ver a Matrix basta parar um instante e observar o comportamento das pessoas privadas. Quer um exemplo? Observe as filas dos bancos. Quando aquele paciente correntista chega à boca do caixa, depois de esperar uma eternidade, ele vai demorar tanto ou mais do que os que estavam à sua frente. É como se dissesse: “– Agora chegou a minha vez de fazer o que eu quiser, então vou conversar bastante com o funcionário, vou me informar sobre tudo, bater aquele papo, aproveitar para realizar várias operações… Os outros que esperem (como eu esperei). Porque agora chegou a minha vez”. Esse é um comportamento típico da pessoa privada (não-comum). Mas é incrível como as pessoas que reproduzem tal comportamento não se dão conta.

Quer outro exemplo? Observe com atenção o seu mural no Facebook ou a sua timeline no Twitter. Você verá multidões de amigos ou seguidores falando só do bem, do belo, do verdadeiro. Você verá pessoas escrevendo sobre ética, valores, consciência, transformação da sociedade… Verá pessoas postando fotos de gatinhos meigos, cachorros com lacinhos, crianças fofinhas com aqueles sorrisos lindos, paisagens fantásticas… Essas pessoas acham (ou, às vezes, nem acham porque estão agindo inconscientemente) que, assim, estariam se redimindo de algum pecado (e se livrando da culpa por não ser boas o bastante). Imaginam (ou até não imaginam, mas agem como se imaginassem) que construindo uma persona (pública) identificada com o bem, o belo e o verdadeiro, estariam se aperfeiçoando (já que avaliam que não são boas o bastante), consertando algum defeito que supostamente teriam trazido: de onde? Ora, elas não sabem e o fato de não-saberem, mas atuarem (num sentido psicanalítico do termo) desse modo, explica tudo (conquanto, para elas mesmas, não explique nada de vez que essas pessoas não estão buscando explicações para o que é como deveria ser).

O mais interessante que você verá nas mídias sociais são as multidões de pessoas comemorando as sextas-feiras! E outras multidões curtindo e retuitando essas manifestações de escravos. Automaticamente. Mas do quê mesmo elas querem escapar nos finais de semana? Se você quiser saber, entre em uma organização hierárquica. Qualquer uma. E observe como as pessoas se relacionam nesses ambientes estranhos, como se não fossem elas mesmas… Sim, são autômatos.

Durante várias décadas fiquei observando esse comportamento de rebanho. Imaginando, sem saber explicar direito, que a hierarquia introduz deformações no campo social capazes de induzir as pessoas a replicar certos comportamentos.

Comecei então a fazer explorações no espaço-tempo dos fluxos, para tentar captar a estrutura e a dinâmica que estariam por trás dessa matriz que produz replicantes.

Até que, de repente, vi uma coisa espantosa. E o que vi foi um ser não-humano – um monstro – representado na figura abaixo:

 

Foi assim então que eu vi a Matrix. E quando a vi me apavorei. A imagem é aterrorizante. Lembra aquelas naves de alienígenas predadores do filme de Roland Emmerich (1996) Independence Day.

Não por acaso. Organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos. Mas alguma coisa impede que as pessoas vejam isso. Eis a razão pela qual resolvi escrever este livrinho.

São Paulo, final do inverno de 2012.

Augusto de Franco

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