Em seu complexo texto “A origem da obra de arte”, Martin Heidegger aborda a questão de que a verdade da humanidade atual é fundamentada no conhecimento técnico-científico. A arte deixou de assumir o papel instaurador de sentido que tinha na idade média. À partir da modernidade, nas democracias que definem-se liberais, o que vem instaurando o sentido da humanidade é o eterno processo de transformação do progresso técnico-científico.
Para questionar esse sentido, Heidegger nos trás à memória a ideia de que o ser humano é eminentemente possibilidade. Estamos no aberto dos possíveis. O comportamento do homem não é programado biologicamente como o dos animais que são reféns de pulsões e instintos que os enquadram em determinados modos de vida específicos com funções e ações pré-definidas pelo seu corpo biológico. Uma cobra jamais poderá assumir o papel de um tigre na natureza, por exemplo. Já o homem não é refém de suas predisposições biológicas. Nosso estado na natureza é definido muito mais pelo que nos é legado quando nascemos. Ou seja, todos as informações que recebemos de nossos antepassados através das nossas tradições de acordo com o ambiente familiar, econômico, geográfico e cultural em que nascemos.
Todas as culturas antropológicas são modos diferentes de entender a realidade. Ao redor do planeta, podemos encontrar diversos mundos diferentes, baseados nessas diversas compreensões do que é real. Só que o autor chama atenção para o fato de que cada um desses mundos possíveis, ao se constituir enquanto uma possibilidade, descarta todas as outras possibilidades. Sendo assim, qualquer realidade em que acreditamos é restritiva de algum modo.
Com a crescente globalização e conectividade do mundo, cada vez fica mais difícil esquivar-se de uma única possibilidade, a da transformação técnico-científica enquanto sentido da vida humana, que vem sendo apresentado como verdade. A massificação e concentração do discurso midiático ao redor de um único modelo econômico embasado por um discurso de entretenimento cultural voltado para o consumo e redução do homem a espectador de poucos também vem restringindo a abertura de outros possíveis. Vivemos principalmente uma crise de ideias e narrativas.
O filósofo chama atenção para o perigo dessa verdade apresentada como única possível: a transformação técnico-científica tende a se infinitizar, ou seja, não há um ponto de chegada dessa verdade, um objetivo maior. É uma tendência eterna que vem dominando mentes e destruindo o planeta terra e seus recursos finitos sem jamais chegar a um fim concreto. É um modo de estar na realidade que tem sempre o progresso como seu próprio fim. Nos perguntamos então: quando acaba o processo? Essa circularidade do transformar é o maior problema. O estar no processo tecnológico é estar preso a esta possibilidade do transformar por transformar.
Dentro da realidade do progresso, tende-se a endeusar a novidade. O que é mais moderno que representa o maior grau de progresso científico é o que tem mais valor. Seguimos alimentando o fluxo da transformação ao estarmos em uma eterna busca do novo enquanto cálice da felicidade e sentido do estar vivo. Só que dentro desse paradigma há uma diferença importante entre a novidade e o novo. À partir do momento em que as novidades acontecem e estamos sempre as consumindo, isso não é novo. O costume é o buscar novos objetos, seguir as novas tendências, nos adaptar às novas plataformas de comunicação… Nos vemos temporalmente imersos nas novidades, a tradição já tornou-se o consumo delas. Não há nada de novo nisso.
O novo seria parar de fazer essas coisas e fazer outras coisas. Parar de transformar as coisas. Viver de outra maneira, fazer outra coisa. Essas novidades não tem nada de novo, já tornaram-se tradição. O novo seria radicalmente diferente desse eterno consumo de novidades técnicas. O novo seria andar de ponta cabeça todo dia, criar novas formas de amar, valorizar o antigo, guiar-se pela luz da lua… Criar novas formas de se estar no mundo que sejam diferentes daquelas incentivadas pela forma atual do progresso técnico científico.
Como, para Heidegger, a arte deixou de ser o que instaura a verdade para essa realidade em vivemos, então talvez a arte possa ser o espaço que abra o pensar para a nova possibilidade que não seja o acumular se esta se propor a não valorizar tanto as novidades. E isso vem sendo um desafio cada vez maior enquanto o estar da arte atualmente tem tudo a ver com a técnica e com a capacidade técnica do artista. A arte hoje está sempre se renovando junto com as novas possibilidades de produção e quanto mais tecnológica ou mais complexo o processo de produção científico da obra, mais valor ela tem perante o mercado e os críticos. Chegamos a tal ponto em que ideias e conceitos são secundários em relação à maestria tecnológica, efeitos especiais, iluminação, softwares de edição de som e vídeo, impressoras 3D, drones e por aí vai infinitamente. Vamos à exposições de arte mais para ver que tecnologias tem sido apropriadas pelos artistas e quais usos para elas além do convencional estão sendo propostos. Mas as ideias, críticas, novas linguagens e olhares para o mundo estão cada vez mais em falta.
É dentro deste contexto que nasce o Tecnoxamanismo, um novo conceito e possível movimento pensado especialmente por artistas, tecnólogos e místicos articulados perante a catástrofe emanente prevista para o planeta nas próximas décadas. Uma quebra radical com o olhar técnico científico que proporciona um novo olhar para as novas e velhas tecnologias que vem dominando as mentes humanas cada vez mais distantes da sua potência em troca do permanente estado de simulação proporcionado pelo ciberespaço.
Para começar é um movimento ambientalista de valorização dos povos indígenas e de suas tradições e tecnologias milenares em conexão com a grande mãe natureza. Parte-se do xamanismo, a prática espiritual dos pajés baseada na exploração da mente em profundidade, expansão da percepção em êxtase induzida pela ingestão de substâncias alteradoras da consciência (Enteógenos) que possibilita o trânsito mental destes homens a outras dimensões (exploradas também pela física quântica) e outras formas de vidas como plantas e animais – o xamã pode ver através dos olhos de uma águia ou correr dentro de uma onça. São eles que tem visões do futuro, profetizam acontecimentos que os vem em imagens ou sonhos. Podem comunicar-se telepaticamente, manuseiam energias de seus e outros corpos, transmutam padrões energéticos através de rituais, incorporam, canalizam e comunicam-se com seus antepassados espiritualmente. São exploradores de um potencial inerente do “hardware” que é o corpo humano inseridos em uma possibilidade de estar na realidade radicalmente diferente do transformar técnico científico em que a maioria da humanidade se vê inserida por falta de opção melhor.
O tecnoxamanismo começa por entender o xamanismo enquanto um potencial inerente de todo ser humano que se propõe a inserir-se em uma nova possibilidade de estar no planeta. Ao invés de máquinas, a mente. Não são somente os xamãs que tem a capacidade de acessar todos os conhecimentos da terra com o fechar de olhos, inúmeras linhas místicas indianas e mundo a fora já falam sobre a possibilidade de acessar uma rede energética espiritual que poderia substituir o Google com o árduo treinar de um estado de alerta mental diferente daquele que estamos acostumados.
Entendendo que o xamanismo é uma linguagem mística falada dentre os povos indígenas semelhante a outras linguagens (correntes) de misticismo, ocultismo, tribalismo e conexão com a natureza faladas ao redor do mundo, acredita-se possível valorizar estes conhecimentos há muito tempo desqualificados pelo paradigma técnico científico devida a sistemática falência do método experimental lógico racional em compreendê-los para superá-lo. Ou seja, explorando esse conhecimento ancestral irracional fundamentado na capacidade intuitiva e expansiva da mente humana poderemos através do nosso próprio corpo superar a relação com a máquina e o progresso que está a nos dominar e possivelmente culminar na extinção da raça humana.
À partir daí olhamos para as tecnologias, métodos de organização social e práticas espirituais ancestrais que datam do período neolítico anteriores até mesmo a linguagem escrita enquanto tecnologia de ponta para pensar uma nova possibilidade de estar na realidade. Analisando a relação milenar humana de parceria entre os gêneros, adoração a uma deusa mulher criadora da vida, organização política voltada aos interesses da comunidade e foco na beleza ao invés da sociedade patriarcal, hierárquica, fundamentada por uma teologia masculina adoradora do Pai e do Filho homens, amante da guerra e da morte, de organização política voltada para a coerção através da violência e do medo e foco nos obstáculos e perigo da vida. A capacidade humana criadora da mente versus o estado tecnológico das máquinas dominantes do pensamento.
É um início de um olhar prático e racional para o que anteriormente era visto como loucura. O lento despertar proporcionado pelo acesso à informação ilimitada, produção de novos olhares e interação direta entre pessoas em rede pela internet vem gerando sensações de repúdio a realidade em que estamos inseridos. A devastação ambiental, deturpação de valores e talentos em nome do consumo, perda das singularidades, solidão, medicamentação da vida, desigualdade social, fobia das diferenças, infantilização da inteligência pela grande mídia, acúmulo de riquezas nas mãos de poucos, genocídio dos pobres, falta de educação e saúde, gastos em guerras… Percebe-se que loucura é o que vivemos hoje. E desconfia-se que o que é considerado loucura pelos loucos possa ser, na verdade, sanidade e solução. Somente o que eles não entendem pode vencê-los.
Ao retomar práticas xamânicas, místicas e esotéricas e afirmá-las enquanto técnica quebram-se algumas correntes mentais presas no paradigma de que tudo que existe é somente aquilo que é provado pelo método científico. E somente com o despertar através do atavismo (crença de que carregamos genes ancestrais adormecidos que podem ser acessados em determinadas condições) das potencialidades escondidas dentro do próprio corpo humano valorizando também as experiências artísticas corporais das performances que propõem-se a repensar o corpo e valorizá-lo através de usos radicais, sexuais e chocantes que trazem à memória a dádiva dos sentidos aguçados em estados animais, podemos começar a olhar para as tecnologias que permeiam nossa vida de modo a coloca-las em seu devido lugar, o de auxiliar a vida do homem e não ditá-la.
Porque o que vemos acontecer é uma desconexão cada vez maior entre a mente, o corpo e a natureza em grande parte gerado pela dependência tecnológica do cotidiano. O abaixar a cabeça para a técnica criada em centros de pesquisa distantes e ministrada por engenheiros e cientistas em todas as áreas da vida vem gerando uma perda de autonomia e potência do que é ser humano. Aceitamos comer comidas artificiais e envenenadas porque acreditamos que só é possível alimentar a todos com o agronegócio e a indústria alimentícia. Abrimos mão do nosso poder de criação infinito porque nos julgamos inferiores às máquinas. E isso serve para tudo. Vamos ficando escravos do conforto proporcionado pelo Google, pelo GPS, pela lâmpada, pelo relógio despertador, pelo ar-condicionado, pelo micro ondas, pela televisão e todas as novidades deles derivadas. Vamos ficando flácidos, gordos, míopes, surdos, frios, distantes, solitários sem perceber que vivemos em um estado de possibilidade dentre tantos outros possíveis e invisíveis ao nosso redor. E caímos em um ciclo vicioso: quanto mais dependentes, menos humanos, quanto menos humanos, mais dependentes. E aí é claro que iremos permitir o estupro da planeta terra, iremos estuprá-la até que ela nos mate a todos já que precisamos das nossas extensões tecnológicas para viver dentro desse estado mental de dependência em que nos encontramos.
A ideia não é negar a tecnologia. Já que acreditamos em um projeto divino para tudo que acontece na história terrestre, consideramos que o homem é nada além de partículas do universo combinadas de modo a ter consciência de si. Por tanto, todo esse progresso e estudo técnico científico a que chegamos até agora não foi em vão. Tudo que passamos foi produto de uma curiosidade do universo sobre si mesmo, uma tentativa de entender e analisar-se. Só que chegamos a um ponto de entendimento em que devemos estar mais conscientes das escolhas que fazemos em relação aos rumos dessa curiosidade universal daqui pra frente. Seguiremos investindo milhões em tecnologias de destruição e domínio de nós mesmos ou em psicodelia, expansão cognitiva e produção de liberdade e autonomia? Ao seguirmos no caminho do acúmulo de conhecimento em centros de pesquisa dirigidos por alguns homens arrogantes que julgam-se Deus, estamos permitindo que biotecnologias criem vida artificiais, misturem espécies de batatas com galinhas em prol do consumo rápido e produção massiva, inteligência artificial que permitirá que em 2029 estejamos reféns da boa vontade de algumas máquinas superiores a nós mesmos, transhumanismos utópicos que pregam que a solução para a morte está em transplantar cérebros humanos para próteses maquínicas ignorando toda a complexidade energética corporal e tudo isso sendo alimentado pela energia elétrica dos rios devastados e em processo de desertificação dos seus arredores. A ideia é conscientizar sobre a escolha da tecnologia daqui pra frente.
Ao valorizarmos a mística e o corpo enquanto alta tecnologia e percebermos o estado de potencia que é ser vivo e humano podemos então nos apropriar da técnica até agora produzida e pensa-la de modo mais saudável, adaptá-la para novos fins criativos e libertadores de uma mente adormecida e refém de alguns softwares produzidos a portas fechadas em reuniões na Califórnia que vem ditando dinâmicas de pensamento dispersas e rasas, lógicas e frias. Ao libertarmos a mente propondo-nos a arriscar novos estados mentais e flertando com o que é considerado loucura pelos loucos estamos nos colocando no papel de cobaia de um novo possível de verdade. Estamos quebrando com o padrão regente do único possível e fazendo algo radicalmente diferente disfarçado de arte crítica e tecnológica. Pensando novos usos pra máquina e pro homem em parceria para a criação de uma nova possibilidade de estar na realidade e quem sabe, futuramente, alterá-la para um estado de vida mais saudável, em maior conexão com nós mesmos e com a natureza.
Tecnoxamãs do mundo, uni-vos!
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